Biohazard: a limpeza (parte 3)

No mercado o tempo parecia que não passava. A bateria do meu relógio acabou e eu nem queria mesmo saber as horas. Comemos primeiro os pães e as coisas que a gerente disse que estragariam rápido. Minha mente fervilhava com idéias sobre denunciar toda essa desgraça, mas vendo os fatos, é difícil acreditar que eu possa sobreviver. Já passou uma semana, eu acho, e os monstros lá fora continuam de pé normalmente. Como é que essas coisas conseguem?

Eu só vivia dentro de casa, então não conhecia muita gente. Mas reconheço alguns. Tem o cara da padaria. Grandão. O segurança do banco, a mulher da loja de presentes. Vai ver se não tivesse vindo trabalhar estariam vivos. Só penso merda: provavelmente estariam mortos mesmo.
Isso me faz pensar no valor do corpo. Será que essas coisas possuem algum espírito? O que as mantém vivas? O que da a elas energia e motivação?

A gerente do banco nos mostrou o forno que usávamos para assar comida às vezes. Também usávamos o fogão que tinha lá. Estava muito velho. Nem sei porque um mercado tem fogão.
Depois de comer, limpar as coisas e organizar os produtos, coisa que ela fazia compulsivamente, ela se sentava no canto onde foi encontrada e abraçava as pernas. Ficava se balançando. Tentei uma vez falar com ela, mas ela me ignorou completamente. Só respondia quando se tratava de um problema pra ela resolver.
O sargento logo percebeu isso.

- Alberto, chama lá a gerente.
- Sim, senhor.

Alberto veio andando. Não entendo bem porque ainda obedece às ordens do sargento. Afinal, toda a estrutura hierárquica não tinha nenhum valor nesse momento. Talvez ele só queira se ocupar, e obedecer ordens seja o bastante. Ou talvez ele esteja tão habituado a ser comandado que isso se tornou natural como respirar.

- Isabela, Sargento quer falar contigo.

Ela não respondeu. Continuou balançando agachada no chão.

- vum bora, tu tem que resolver um problema pra ele.
- Que problema? – perguntou ela
- Sei lá, porra. Não é problema meu. Bora!

Ela foi com ele, que a segurou no braço. Consegui deduzir pelo olhar dele que queriam se aproveitar dela, mas ela parecia fora de si. Talvez seja estresse pós-traumático ou algo assim. Segui-os e vi o que aconteceria.
- Qual é o problema? Perguntou Isabela com seu ar de sempre.

Ela sorria muito quando falava com os outros. Sempre parecia alegre. Percebi que era um sorriso compulsivo. Nada natural. Enquanto sozinha ela falava sozinha com voz de angustia. Quem seria essa mulher de verdade? Será que sua mente poderia se recuperar?

- Não façam isso! – exclamei
- Não é lerdo mesmo, em moleque. Já sacou a porra toda, então?
- Ela ta traumatizada cara. Isso vai ferrar com a cabeça dela. Não faz isso.
- Vai pra merda, moleque. Tu fica se fazendo de santo aí, mas tava olhando pra bunda dela que eu vi. Vai tomar no cu. Tu também quer!
- Pra isso que tenho um código de ética.
- Hahahahahaha! Tu é maluco, cara. Olha só pra ela. Ficou maluca. Se duvidar nem sente nada!

Eles tinham armas pesadas e eu não. Não adiantaria enfrenta-los. Eles eram cinco, sempre armados. Eu tinha só uma pistola e mesmo assim nem sabia atirar. Minhas palavras foram vazias.
Eles fizeram uma fila. Colocaram-na no caixa, onde passavam os produtos. Olhando aquela cena eu sentia um misto de cólera, tristeza, desespero e desejo. Sim, devo admitir que também queria. Mas meu senso de ética jamais me permitiria. Não eu, que luto pelo bem. Não eu...
Peguei uma garrafa de vodka e fui pro açougue. Bebi rápido e apaguei. Disso eu lembro apenas uns fragmentos. Alguém com a garrafa na mão. Alberto. Ria muito, me levou pra algum lugar.

- Isso aí, cara! Isso aí porra!

Acordei no segundo andar do mercado, onde ficavam algumas mesas e havia um vidro que dava visibilidade para a rua. Levei um susto com os monstros, mas estava de ressaca, e me movi devagar. Meu movimento lento não causou admiração neles. É como se eles esperassem desespero. Os movimentos lentos, tranqüilos ou mesmo atrapalhados como os meus não surtiam qualquer efeito. É como se eu já fosse um deles.
Talvez seja isso. Talvez só estejam embriagados e um dia acordarão com uma tremenda ressaca. Quem sabe tudo volta a ser como era?
Como se o que era fosse algo bom...

- Acordou, garoto!
- Sargento?
- A partir de hoje pode me chamar de Silva.
- To acostumado a te chamar de sargento já.
- Chama de sargento silva, então.
- Ta. Que aconteceu ontem?
- Lembra não?
- Nada, cara. Bebi pra caralho.
- Porra, tu comeu a Isabela com vontade, maluco. Tinha que ver. A mulher nem reclamou, Gozou e os caralhos.
- Que?
- É, maluco. Tu apagou e ela continuou tentando te agarrar mesmo você estando apagado.
- Puta que pariu...
- To falando que no fundo tu não é tão certinho assim! Bora, ela acordou de bom humor e fez carne.

Desci e fui recebido pelos soldados com um certo grau de admiração. Não é possível que me admirem assim só porque comi a mulher. Devo ter feito algo mais.

Perto do depósito estavam empilhadas caixas, como que formando uma mesa. Estava forrada com uma toalha que estava a venda no mercado. Ela fritou um bife de alcatra, e realmente estava bom. Com farofa pronta, batata palha, arroz, feijão e queijo. Estava tudo bom.
Ela se sentou do meu lado e ficou segurando meu braço. Era estranho pra mim. Ficava beijando meu braço.

- Que mais eu fiz ontem à noite?
- Maluco, tu virou outra pessoa. Vou te falar uma parada: nunca esperei isso de você.
- Que eu fiz?
- Tu catou um fuzil, subiu no telhado e explodiu um carro lá no fim da rua. Daí todos os zumbis correram pra lá e tu deu o papo: cata as bombas do carro. Sargento já tinha sacado seu plano, daí já chegou com os explosivos. Agora temos a corneta e mais quatro bombas, neguinho. Vamos mandar esses monstros de merda pro saco. Porra, a gente vai sair desse buraco!
- Eu atirei com o fuzil?
- Pois é, maluco. Tu parecia que tava possuído. Ficava chamando a gente de burro, que já devíamos ter feito isso.
- Algo mais?
- Ah sim. Deu mais uma idéia quando tava chapado quase dormindo.
- Qual foi?
- Foi assim que tu falou: Dois no teto. Um explode um carro do estacionamento na frente e atrai os monstros e o outro avisa pro sargento se a barra estiver limpa do lado de trás. Daí se estiver eles saem, atravessam a rua e colocam a bomba lá. Longe do carro, pra não foder com ele. Daí voltamos, trancamos tudo e acionamos a corneta. Depois de explodirmos a maioria, matamos o resto com fuzil. A gente tem bala pra caralho. Maluco, tu é inteligente pra caralho. Só fica pensando e sai com uma dessas.

Pareceu mesmo uma idéia razoável. Só não me imagino fazendo esse tipo de coisa. Pareceu como um plano que não viria de mim. Fico sempre concentrado nas questões abstratas. Será que inventei mesmo esse plano? Quem sabe?
Depois de comermos, Isabela lavou os pratos e os talheres. Poderíamos simplesmente jogar fora e pegar outros, mas ela lavou e guardou no mesmo lugar em que encontrou.
Sargento Silva e os soldados ficaram no teto praticando tiro ao alvo e eu sentei num canto. Minha cabeça tava explodindo.

- Ei, qual é o seu nome?
- Roberto.
- Posso te contar um segredo? – disse ela ao abraçar meu braço.
- Conta.
- Sei que você é um anjo. Pode deixar que eu não conto pra eles. São do diabo. Se eu contar pra eles, acabam te matando.
- Não sei bem se sou anjo.
- Porque?
- Porque anjos são bons. Não acho que eu sou bom.
- Você é bom. Eu posso sentir que é bom.
- Eu te estuprei ontem.
- Não.
- Não?
- Você fez amor comigo, me trouxe de volta pro mundo. É um anjo, tenho certeza.

Fiquei sem palavras. A fantasia daquela mulher a levou a efetivamente me endeusar. Mal sabia ela que não sou nada disso. Bem, se essa fantasia é boa pra ela, quem serei eu a negar?
Abracei-a, o que pareceu para ela como uma confirmação das afirmações que ela acabara de fazer. Ficamos abraçados ali o dia todo. Me acostumei com o calor dela. Peguei no sono

Havia um menino na frente do lago, e de repente ele se tornou um gato filhote. Parecia débil. Ao que parecia, o gato pretendia mergulhar e pegar um peixe.
Contrariando todas as expectativas, o gatinho mergulhou com tanta destreza e velocidade que não foi possível vê-lo antes de ele sair do lado com um peixe quase do seu tamanho na boca.
O menino cresceu e teve que voltar ao colégio depois de grande. Seu diploma havia perdido a validade. Ainda precisava aprender antes de continuar: é o que o estado decidiu.

- Ô moleque. Ta dormindo porque? Cacete, agora só vai dar pra detonar os zumbis amanhã.
- Beleza, então.
- Dormiu feito anjo. - Disse Isabela
- Aé? Estranho...
- Sonhou com o que?

Contei meu sonho a ela, ao que ela reagiu imediatamente.

- É uma mensagem de Deus!
- Que?
- Ta dizendo que você vai conseguir.
- Conseguir o que?
- Não sei dizer, querido. Mas é algo para o qual você não se imagina preparado. Vai conseguir e contrariar suas expectativas.

2 comentários:

adriano disse...

continuo acompanhando, e ainda está muito bom...

você pretende escrever bastante, ou será uma história curta?

só queria sugerir uma coisa Silas, que pra mim não faz diferença por já ter lido as outras partes, mas pra quem chega no blog facilitaria: tipo links pras outras partes, logo abaixo do título de cada parte nova!

valeu!

Silas disse...

Essa estória ainda está no começo, mas não sei dizer o tamanho. Não coloco regra e nem faço plano.

Sobre os links, eu criei marcadores pra cada parte, mas essa também é uma boa idéia. Só ficaria complicado quando eu estivesse na décima, por exemplo.

Valeu, cara...