Emanuel, o maligno


- Pare. Por favor. Já não suporto tamanho sofrimento.
- Não quero parar.

- O que você procura? Porque faz isso comigo? Tenho muito mais a lhe oferecer do que parece.
- Eu não estou procurando nada. Aquilo que eu devia encontrar, já encontrei.
- Então porque você está fazendo isso? O que eu fiz para merecer tamanha punição?
- Livre-se de pensamentos estúpidos. Você não está sendo punido por nada. Essa idéia de que você têm de merecimento é um grande erro.
- Se não me acha culpado, porque me odeia tanto?
- Ignorante. Não é porque você se move com afetos que eu também sou assim. Já que hoje é seu ultimo dia, posso te explicar essa questão. Isso me ocorreu apenas recentemente.
- Você acha que pode ser justificar?
- Que tenho eu com justificativas? Quer mesmo que eu te explique ou suas perguntas são retóricas?

O homem era bom com retórica, e pensou que, por isso, poderia convencer seu agressor de que seus pensamentos estavam errados.

- Quero que me explique.
- Pois bem. Eu percebi que os homens têm o mal dentro de si. Todos eles. Mas esse mal fica escondido e só sai em certas ocasiões. Claro que alguns já desenvolveram o poder do mal mais do que outros, mas são todos maus. Alguns só praticam o mal por um suposto bem. Daí surgem matadores de assassinos, exércitos da paz, lutas por amor. São maus, apenas não admitem.
- Está dizendo que todos os homens são maus?
- Sim, em suas devidas proporções. Por favor, não interrompa meu raciocínio.
- Certo, continue.
- Existe um principio do mal, que é mascarado com a razão. Eis o que a razão é: uma mascara e nada mais.
- Mas não pode o homem se libertar através da razão?
- Não. Através da razão os homens só fazem reproduzir ladainhas e preconceitos. Com ela, eles fazem qualquer absurdo se tornar justificável. Com o mau não é diferente. Só aqueles que alcançaram um maior nível de consciência entendem isso.
- Pode me explicar isso melhor?
- Facilmente. Veja só: muitas vezes vemos homens poderoso fazendo o mal para os outros. Dizem para si mesmos que o fazem pelo dinheiro. Ditadores matam pessoas por não o respeitarem, por serem inferiores ou qualquer que seja a ladainha que inventem. Pais espancam filhos por serem mal educados, maridos batem na esposa que é infiel. Enfim, o homem sempre encontra uma justificativa para o mal que pratica, mas nunca entende o que é o mal de verdade.
- Não são essas coisas que você definiu o mal em si?
- Não, elas são apenas o efeito do mal. São o mal maior plasmado em espíritos menores.
- E o que é o mal maior?
- O mal maior é liberto da razão. Ele não precisa de justificativa e muito menos de razões afetivas. É o mal, pelo mal e através do mal. Sem direção: um mal que vai para todos os lados. Sim, uma essência demasiadamente sutil para que espíritos inferiores percebam.
- E o bem?
- É a mesma coisa: O bem, pelo bem através do bem. Bem e mal precisam um do outro.
- Digo, você não tem o bem dentro de si?
- Eu sou o lado das trevas. Existe o lado da luz. Nós coexistimos. Eu nada mais sou do que um fragmento tornado completo. Puro mal.
- Se você reconhece que existe o bem, então deve reconhecer que, da mesma forma que todos os homens possuem dentro de si o mal, devem também possuir o bem.
- De fato.
- Daí decorre que você tem o bem dentro de si.
- Não.
- Como não?
- Eu não sou um homem.
- Parece a mim como um homem.
- Não. Eu sou metade da deusa em forma humana. Sou um semi-deus. A deusa é tanto da guerra quanto do amor. Eu sou o semi-deus que herdou a metade da guerra e havia outro semi-deus que herdou a metade do amor.
- Que houve com ele?
- A ignorância dos homens o matou, e com sua morte se foi a esperança desse mundo. Quando expulsaram daqui o amor por seus preconceitos e miopias eu tomei conta. Não podem me matar da mesma forma que mataram o amor, porque eu penetro-lhes as entranhas. Eu mesmo, por onde passo, deixo um rastro de destruição e ódio. Você tem muitas pessoas que vivem apegadas a você, justamente pro serem primitivas. Essas pessoas irão me odiar, e por isso serão iniciadas no meu mundo.
- Então é isso que você quer? Propagar seu ódio?
- Não. O que eu quero é destruir. Se meu ódio é propagado ou não, isso me é indiferente. Eu não vivo segundo o pensamento de alcançar algum objetivo. Como eu disse, faço o mal pelo mal e através do mal.
- Não se sente só?
- Todos os homens livres são solitários. Quando você mergulha no fundo da sua alma, acaba descobrindo as ligações entre os homens não passam de ilusões. Se não são expectativas criadas pelo convívio social, as expectativas têm origem no íntimo do indivíduo. O homem vive com vários mantos cobrindo sua consciência acerca da natureza das coisas, e por isso fica sempre longe do essencial.
- O que é o essencial?
- Que o apego é a causa da maior parte de seus sofrimentos. A ligação que as pessoas fazem umas com as outras traz dor sem fim.
- Ora, mas o bem poderia ser livre, tal como o mal. Assim, eu poderia chegar num nível de consciência acerca do bem tão grande que não mais teria expectativas e exigência. Da mesma forma, não me apegaria a nenhum homem, amando a todos indiferenciadamente. Não parece razoável?
- Razoável, razoável... Na verdade isso não me parece nem um pouco razoável, mas volto a dizer que a razão não me importa. Não passa de uma mascara.
- Então não reconhece o bem supremo?
- Tão humano... você é. Veja só, reconhecer com a razão é algo que já fiz a muito tempo. O Semi-Deus do amor me comunicou inúmeras vezes. É bem fácil de entender esse amor que chamam ágape através da razão. Mas entender pela razão é uma coisa, e viver é totalmente outra. Minhas palavras acerca do mal provavelmente não lhe tocaram, porque você nunca viveu nada de análogo. Eu, da minha parte, digo o mesmo acerca do amor. Nunca o vivi, e portanto acerca dele não posso emitir qualquer tipo de julgamento de valor.
- Você tem que buscar o amor.
- Você não espera, realmente, que eu simplesmente seja levado por uma tentativa tão arcaica de doutrinação, espera?
- Isso tudo que você falou são delírios! Você só quer justificar seus crimes!
- Idiota. Não entendeu nada. Não quero e nem preciso justificar nada. Eu vou te matar dentro de instantes por matar. Não quero nada de você, não tem nada me movendo a matar especialmente você e não a outro diabo. Só vou te matar porque foi o primeiro infeliz que cruzou o caminho.
- Por favor, tenha piedade.
- Essa é apenas uma palavra vazia para mim. Não reconheço um significado nela, porque não me lembro de ter sentido piedade alguma vez na vida. Como posso ter piedade de você se nem mesmo sei o que é isso?
- Piedade é me deixar viver!
- Haha! Como se sua vida fosse realmente importante! O Conceito de piedade pode, por vezes, legitimar o assassínio. Só depende de como a razão o contorce. Veja só, quando se trata de piedade eu só posso emitir raciocínios. Mas vou ser honesto. Não estou te matando por piedade e nem porque tenho algo contra você. Não é nada pessoal.

O homem fechou os olhos. Parecia rezar e pedir perdão a Deus para seus últimos momentos, esperando sua redenção.
De repente algo inacreditável aconteceu. As nuvens densas deram abertura à luz do sol, e algo veio do céu e se fixou no chão. Uma rosa vermelha, que pingava um líquido vermelho. Não havia como saber se era sangue, mas Emanuel foi hipnotizado pela flor.

- Matias, é Matias!
- Esse é o nome da Flor?
- Não, seu idiota. É sangue de Matias! Não está vendo?

A ultima gota caiu da flor, que desapareceu. Em volta do local cresceram outras flores de diversas cores, e as nuvens se foram completamente, dando lugar ao sol. A floresta, antes escura e sinistra, radiou com uma beleza imensa.

- É Deus. Veio me buscar!
- Sua estupidez não tem limites! Não percebe o que acaba de acontecer? O sangue de Matias se derramou no chão. Esse mundo será curado.
- E o mal? E você?
- Não sei. O que sei é que sempre haverá lugar para o mal no universo.
- Aquele sangue é o de Jesus! Aceite-o como seu salvador!
- Jesus, Matias. Qual é a diferença? Ambos são agentes do Ágape. Você não entendeu os símbolos que usei? Enfim, não aceito ninguém como meu salvador, Primeiro porque sou livre e ninguém me guiará a lugar algum. Segundo porque não vejo nada de que eu possa ser salvo, já que sou o mal personificado. O que você chamam de condenação é a essência da minha existência.
- Não se trata propriamente de te guiar, Emanuel, mas apenas de despertar o bem dentro de você.
- Já chega de conversa. Tenho reflexões a fazer.

Emanuel matou o homem com pressa. Pela primeira vez na vida ele não esperou o desespero de sua vítima o deliciar. Sim, havia coisas mais importantes a tratar do que o sofrimento de um diabo qualquer.

- A jornada tem que continuar. – disse seu companheiro demônio. - Tem que continuar!

Ele sentiu em sua mente a direção para a qual deveria caminhar, e foi nela sem ter idéia de onde chegaria ou mesmo se chegaria a algum lugar.

Et ecce ille surrexit cum rosam, et coelum jucundum in mihi vultum

1 comentários:

Duan Conrado Castro disse...

Um ritual mágico que exorciza, in abstracto, parte das mazelas do mundo. O bem vence o mal, pelo menos parcialmente, já que ambos parecem condenados a coexistir para sempre...O indivíduo, que em sua insignificância desfalece diante de um mundo mal, imagina-se em sua presunção como capaz de transformar o mundo por meio de objetos mágicos e da força de seu próprio querer (animismo). Como disse Marx, a religião é "de um lado a expressão da miséria real, e de outro o protesto contra ela, e a religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo."