Águas passadas


A noite estava escura. Chovia, mas estava quente. Saiu de casa carregado por um impulso de não se sabe o que. Nem sabia pra onde estava indo, mas lembrou que sempre que saia assim acabava lá pro fim da praia. Subiu, como sempre as escadas altas que levavam à cachoeira e lá do topo não conseguia ver nada por conta de um poste jogando luz em seus olhos. Mas nem queria ver nada mesmo.

Desceu na água gelada e sentou no ultimo degrau. Era grande, nem dava pra subir por ali. A água caia e passava por suas pernas. Onde ele sentou, acabou formando um ponto sem água. Foi só ele chegar que a água se retirou. Que ironia...
Era uma corrente baixa. Do tamanho de um dedo, mais ou menos. Dava pra deitar naquele chão cheio de lodo e sentir a água gelada fluindo. Seria esse um real motivo de sofrimento, talvez. Quem sabe a água não seria a fonte de purificação?
As gotas da chuva já estava cessando, mas já haviam se acumulado nos olhos. Ele só via vultos.

Lembrava que quando menino era tudo menos complicado, só mais doído. Agora já nem sabia se doía por saber que deve doer ou se dói de fato. As árvores viraram nuvens que respingavam o que sobrara da chuva, parecia até uma clepsidra do relógio natural, pingava cada gota fazendo questão de chocar-se contra as rochas do pensamento. Esse aí saía da cachola devagarinho, ia rastejando pelos musgos até achar uma altura boa para pular para o ombro, aproveitava uma cicatriz ganhada de uma queda da mangueira plantada nessas chácaras que só avó tem para penetrar sangue adentro, só parando no coração.

A água gelada eriçava as costas enquanto contornava cada curva de pele para reencontrar-se consigo mesma, já o lago parecia borburlhar de tão agitado, talvez fosse isso. Lago borbulhante faz a cabeça borbulhar também. E a dele já estava fervida há muito tempo. Tinha perdido um chinelo, o do pé esquerdo, por que sempre tinha que acontecer com as coisas canhotas da gente?

Levantou a cabeça devagar e viu o chinelo caindo pelos degraus. Caiu num canto que era impossível visualizar. Andar descalço sempre foi bom, de qualquer maneira. E aquele chinelo estava velho. Soltou o outro do pé, mas ele agarrou perto e não foi. Como certas feridas que, diferente das outras não são levadas pela correnteza do tempo. Tem algumas que ficam. Perder esse seria uma desculpa pra comprar um novo, mas voltar só com um provavelmente seria motivo pra vir procurar o outro e continuar com o velho. Mas o velho tinha que ir embora, então ele o lançou no meio do mato.

Sei queixo tremia. Tudo tremia naquela água gelada. Será que com alguém ali junto seria tão frio? Será que seriam dois tremendo? Ou seria o calor de um o bastante para o outro?

Ele nunca abraçou ninguém dentro d’agua, então não sabia, mas quis acreditar que sim.

- a vida é dura. – disse ele em voz alta

Parecia imaginar que alguém o ouvia. No fundo se sentia um covarde isolado e se lamentando. Só que as crianças da áfrica não serviam pra amenizar seu sofrimento: pelo contrário. Saber que há pessoas sofrendo tanto o fazia sofrer ainda mais. Tinha em seus ombros o próprio peso e também o do mundo.

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