O domador de mentes no reino das abominações


Nossa pequena vila estava sendo violentamente afetada pelo desmatamento. O novo império se ergueu, e derrubava árvores para suas enormes construções, que não pareciam ter muita utilidade para nós. Os animais fugiram, e os que não fugiram morreram. Não tínhamos muito mel, porque as abelhas não tinham arvores para fazer ninhos, e nosso plantio era constantemente saqueado por membros do império.
Certo dia decidiram que nossa vila deveria deixar de existir. Segundo eles, éramos primitivos e, portanto, estávamos ali envergonhando o império e ocupando um espaço que não era nosso.
Para nós, no entanto, era difícil entender o que diziam. Porque é que nós éramos primitivos? Porque o espaço não era nosso?
O sábio da tribo soube nos responder a segunda pergunta. Para ele, a terra não é nossa e nem de ninguém. Somos nós é que pertencemos à terra, e devemos, por essa razão servi-la.
Eu me convenci de que bastava eu falar disso ao emissário, para o povo dele entender que temos que cuidar da terra, pois ela é a nossa mestra. Quando ele veio, chegou com trinta homens. Eles tinham expressões agressivas, como se estivessem ameaçando suas famílias o tempo inteiro. Tentei apaziguar um deles, mostrando que éramos um povo de paz, mas ele me deu um soco no peito. Ele não sabia falar minha língua. Olhava pra mim como se eu não fosse nada, porque minha roupa era diferente e eu usava brincos.

- Atenção primitivos, viemos aqui comunicar-lhes que já por muito tempo permitimos que vocês usem nossas terras sem pedir-lhes nada em troca. Agora, no entanto, precisamos de força contra um inimigo que pretende desafiar a autoridade máxima de nosso senhor. Eu vejo que há homens fortes aqui. Os que podem lutar devem vir comigo.

O sábio da nossa tribo se pôs a falar, parecendo tão irritado quanto os soldados. Estavam ameaçando a família dele.

- Vocês, filhos da terra, homens de lama como nós, chegaram nesse lugar quando meu avô era ainda criança. Estávamos aqui, de acordo com as leis dos deuses, e vocês as profanaram destruindo os animais, prendendo alguns, e tornando as águas dos rios podres. Somos nós os que toleram sua presença, pois sentimos na nossa vida a miséria causada pela sua falta de sabedoria. O nosso povo é de paz, e, portanto, não lutará.

O homem e seus soldados riram violentamente. Não os entendemos. Quando o homem percebeu que todos nós estávamos com o sábio, puxou sua espada e cortou-lhe a garganta.
Choramos diante do corpo dele, pois era nosso maior guia, tendo nos instruído nos conhecimentos da terra. Foi ele, aliás, que me ensinou a arte de domar as mentes. Ele dizia que sou muito curioso e que, como um xamã, deveria saber como me defender. Dizia ele que eu tenho sabedoria para lidar com a mágica, então todos me prepararam. Ele me salvou da loucura, quando o espírito do mal me atormentava, e me ajudou a ser o mágico que sou hoje.
Na verdade, imagino que os outros passarão a me ver como chefe, embora eu não me considere pronto.

- Seus tolos. Não percebem que esse homem os ilude com bobagens? Não existem deuses e nem espíritos, e a natureza não existe senão para nos servir. Se há deuses, porque não falam conosco, que os afrontamos? Tolos! É só porque vocês acreditam que as palavras desse tolo têm efeito sobre suas mentes!

Todos me olharam. Como eu esperava:  me olharam como quem espera uma resposta. Então fui até ele, engoli o choro e falei.

- Nosso ancião, admirado, não fazia mais do que despertar em nós aquilo que havia em nosso coração. Na verdade, nos mostrou a sagrada terra e o sagrado espírito, os quais encontramos dentro de nós. Nunca nos iludiu. Você, por outro lado, que se imagina como sendo parte do centro de todas as coisas, não percebe como é insignificante diante da Grande Mãe.

O homem me olhou querendo rir, mas percebeu que eu falava sério. No fundo, pelo que percebi, ele conservava em seu coração a crença de que minhas palavras não passavam de brincadeiras. Falou, então, ignorando minha posição.

- Não tenho tempo para seus delírios idiotas. Você é um jovem bem robusto, como alguns outros. Você sabe lutar.
- Posso me defender com lança e flecha, mas minha arte mais refinada é a mágica.
- Um mágico? Temos muitos na nossa cidade!
- Então porque não há mágica correndo pelo seu corpo?
- Truques! São todos truques e nada mais! Eu, na verdade, nunca caio nos truques, mas gosto de rir-me dos tolos que se impressionam com seus truques. Faça um e demonstrarei ao seu povo que você é uma farsa.

Eu mergulhei minhas mãos no chão, tal como nosso velho sábio me havia ensinado, e debaixo da terra encontrei os demônios que aquele homem havia enterrado. É onde todos os demônios escondidos ficam.
Uma imagem terrível, na qual um homem raptou sua mãe e a violou, me foi revelada, enquanto o comandante dos soldados se retorcia no chão, chorando e gritando.

- Servo de Satã! O que você fez comigo? Como você fez essa imagem surgir na minha cabeça? Tire já isso que você colocou! Eu te mato!
- Não sei o que é Satã, e não sou servo de ninguém senão da natureza. Se satã é a natureza, não há sentido e tratá-la com tal tom de voz. O que eu fiz não foi nada de mais. Apenas despertei um de seus muitos demônios e deixei você ver.
- Mas o que são demônios?
- São obscuridades da natureza. Você os esconde para se esconder deles, mas eles estão sempre debaixo do chão que você pisa, na profundidade de um palmo.

O homem pareceu curioso sobre aquilo que eu havia feito. Um brilho nos seus olhos surgiu. Aproximou-se de mim e tocou no meu cajado.

- Sua habilidade é só essa? Desenterrar os demônios?
- Eu sei desenterrar todo o tipo de demônios e anjos, porque homens também enterram anjos. Minha arte, na verdade, é a de conciliar as forças da natureza. No entanto, através do domínio de anjos e demônios, também consigo controlar a mente dos homens que não têm os pés enterrados no chão.
- Então você controla todos os homens que não estão parados com o pé debaixo do chão?
- Não. Os homens que eu controlo são aqueles que voam. Tal como você.
- Então quer dizer que eu sei voar? – gritou o homem gargalhando. – Nesse caso, controle a minha mente!

Eu fechei meus olhos com minhas mãos no chão, e os vermes da terra foram trazidos a mim pelos espíritos aflitos. Falaram a mim da seguinte maneira:

- Ajude-nos, porque vivemos presos dentro desses vermes, escondidos da luz do sol. Você, como iniciado nos mistérios da natureza, deve saber que todos nós devemos ser iluminados pelo sol. Há, no entanto, essa barreira. Se nos ajudar a quebrá-la, te serviremos em teu propósito.

Quando eu abri os olhos, eles olhavam pra mim com sorrisos zombeteiros. Falei ao comandante da seguinte maneira.

- O senhor, que é hábil no uso da espada, poderia me atacar?
- O que, está com vergonha de não poder me controlar? Olhe, tudo bem, eu te dou a dica. Eu não sei voar!
- É o senhor fraco demais para me atacar, fungindo com piadas? – respondi simulando um tom de provocação.

O homem se ofendeu e desceu de seu cavalo. Pegou sua espada e veio na minha direção. Quando ele chegou perto, os vermes entraram em suas botas pesadas. Entraram dentro da sua unha, e seu espírito foi dominado. Anjos e demônios, causando comportamentos aparentemente sem sentido. Mas eu os pude perceber. Um deles era o demônio do medo, que se aliou ao anjo do amor. Assim, o homem passou a ter medo do amor. Outro era o anjo da piedade, que foi dominado pelo demônio da ganância. Assim, ele só tinha piedade dos ricos.
Mas na verdade o espírito mais poderoso era o mensageiro, que ele ignorava completamente. O mensageiro dele era um anjo e também um demônio, porque assim ele era natureza. Tal é a sabedoria dos nossos mensageiros. Mas ele era ignorado, porque a sombra havia tomado seu lugar. O vulto com o qual o comandante se identificou escondeu o mensageiro debaixo da terra, e esse exigia ser ouvido.
Contei a ele o que eu desejei em voz alta, e ele executou no corpo do homem. Facilmente tentado a se aproximar de mim e ingenuamente seguro de si, o homem dançou como uma mulher, com movimentos leves, embora o espírito do medo lhe tenha feito sentir um enorme tormento. Ele dançou, e chegou a ficar na ponta dos pés.
Logo ele foi assistido pelos espíritos que lhe dominavam. Eram o espírito da arrogância e da soberba, guiados pela ganância. Eles lutaram com o mensageiro sem sucesso, até que lhe ordenei que parasse a dança, e ele voltou para debaixo da terra, agradecendo por poder respirar.
O homem, caído no chão, não se ofendeu com aquilo. Pelo contrário se encheu de ambição e curiosidade.

- Você é poderoso! Meu mestre se interessaria por suas habilidades e poderia dar benefícios a você por elas! Venha comigo!
- Não tenho poder algum. O poder é da terra. Não quero benefícios pra mim além daqueles que a terra pode me oferecer.
- São frutos da terra! Você poderia morar no palácio, poderia ter concubinas. Seria autoridade!
- Essas palavras que você usa vêm de espíritos desconectados. Somente espíritos incompletos admiram a posição de comando ou de subordinado. Os homens sábios conhecem a natureza, e sabem que tal coisa não é senão erro humano.
- Podemos ajudar seu povo a ter mais comida. Sabemos que passam aqui fome e sede, porque nossos soldados não lhes protegem a plantação. Você poderia conversar com o nosso mestre, o imperador, e então ajudar seu povo.

As anciãs me olhavam com olhos aflitos, pois seus netos choravam com fome em seus braços. Eles me escolheram como o guia, e era minha função ajudá-los.

- Pois bem. Aceito ir ver seu mestre.

Eu segui a pé e o comandante guiou os soldados. Esses desfizeram a organização quando me aproximei por medo de se aproximarem de mim. Quando percebi isso, me afastei deles e os acompanhei da metade da distância de um lançamento de pedra. Somente assim eles se alinharam e marcharam.
Se perto da minha aldeia havia poucas árvores, por outro lado quando mais eu me afastava, mas escassas elas ficavam, até que num ponto elas desapareceram. Caminhamos por duas horas, até chegarmos na cidade. Havia plantas sendo tratadas por homens magros e fracos. Possuíam dor em seu olhar, e aquilo me deprimiu profundamente. Um deles, percebendo que eu olhava para ele, veio até mim e me falou com sua voz rouca.

- Não teria o senhor algumas moedas para eu alimentar minha família? – disse ele.
- Mas moedas são duras e não podem ser comidas. Porque você quer moedas? – perguntei curioso.

O homem me olhou confuso. Parecia tratar aquilo que eu falava como um quebra cabeça ou um jogo que se faz com crianças para que ganhem esperteza com a linguagem.

- Mas sem as moedas, meu senhor, não posso ter comida. É por moedas que trocamos comida. A água eu busco a uma légua daqui, mas comida eu preciso comprar. Essa terra na qual trabalho não é minha.

- Peço perdão, mas não tenho moedas. Na minha terra não temos moedas.
- Por favor, senhor. Meu filho passa fome!
- Estou entrando na cidade para tratar com o imperador. Falarei com ele sobre sua situação.

Os olhos do homem brilharam, e outros que ali estavam vieram até mim, pedindo também que eu falasse sobre eles ao imperador. Guardei o nome de cada um deles, porque cada um tinha uma família separada do outro, quando um soldado voltou para me buscar. Ele estava assustado ao lidar comigo, mas não hesitou em bater no homem que falava comigo e lhe ordenar que trabalhasse.
Conforme eu me afastava, ele se afastava me seguindo. Quando eu lhe olhava, ele apontava a direção pra onde eu devia ir, tendo o cuidado de se manter distante. Entrei para ele parar de bater no homem faminto.
Naquela cidade eu vi abominações sem tamanho. Animais presos, alguns mortos. Homens gritando todo o tipo de coisas. Uma confusão, todos correndo de uma parte para a outra, como se seus espíritos os levassem com urgência para algum lugar, mas paravam diante de pedras brilhantes e as fitavam. Meu cajado possuía uma dessas pedras, e por causa disso um homem parou para conversar comigo.

- Ei, selvagem! Onde você conseguiu essa vara?
- O mestre sábio a deu a mim quando me iniciou.
- Bem, cá está o sábio que a tomará de você por um preço justo. Cem moedas de prata!

Alguns homens olharam para nós por causa da fala dele, e se amontoaram em volta de nós olhando para o cajado. O homem se orgulhou disso e continuou.

- É isso mesmo que ouviram. Vou comprar esse cajado por cem moedas de prata! E ainda me chamam de avarento por essas bandas!
- Perdoe-me a decepção, mas esse cajado pertence à minha tribo, e através dele que nos conectamos com a mãe natureza a muitas gerações. Ele nos foi mandado pelos deuses.

O homem deu usa risada e me falou.

- Seu cajado foi mandado pelos deuses? Bem, essas moedas que lhe ofereço, são tantas que, por algum tempo te tornarão, você mesmo um deus, e não precisará mais dos deuses.

Num momento sem eu perceber com certeza, um homem me tomou o cajado e correu entre a multidão. Consegui achá-lo e o persegui pela cidade, até que um soldado lhe derrubou e tomou meu cajado dele. Junto comigo, trouxe o homem que gritava chorando a palavra clemência.

Foi quando entramos no palácio.

O que mais me surpreendeu ali foi que homens estavam sentados próximos da entrada, envoltos em panos. Eles pareciam não ter casa. No entanto, dentro daquele palácio, havia muito espaço sobrando e quase ninguém senão guardas e homens com roupas estranhas e perucas.
Dentro do palácio encontrei novamente o comandante, que brigava com o soldado por ter me perdido de vista. Quando entramos, ele foi comunicado sobre o roubo, e sua ira caiu sobre o ladrão, que nunca removia do rosto aquele espanto.
Agarrou-se nos meus pés chorando e me falou da seguinte maneira.

- Perdoe, senhor minhas atitudes. Eu preciso dar comida aos meus filhos! Não quis lhe fazer mal, tampouco acumular riquezas! Eu só queria comida!

Eu chorei. Não era ele o único a padecer de fome em um lugar com tanta comida. Eles possuíam muita comida e bebida. Também possuíam grandes edifícios. Mas os espíritos que ali habitavam eram abomináveis. Nunca eu havia visto um lugar tão profundamente desconectado da Grande Mãe como aquele, onde homens viviam voltados apenas para si mesmos. Todo aquele ambiente me deprimia.

- Não deixe que esse vadio te faça ter compaixão! Temos leis nessa cidade, e ladrões aqui perdem a mão. Esse ladrão perderá a mão, e eu tenho o poder de executar a lei.

O homem estendeu o braço esquerdo e começou a chorar. No entanto, o comandante lhe tomou o braço direito, o que lhe fez chorar ainda mais. Mas ele abaixou a cabeça e não tentou reagir. O sábio, através dos poderes da terra, falou à minha mente como um relâmpago, e, através da pouca força natural que havia no ar, controlei o comandante, que lutou com mais força do que antes contra mim inutilmente. Por causa da força dos espíritos maligno que o controlavam, eu só pude deixá-lo imobilizado. Tive que falar, então, e esperar que somente o poder das palavras ajudasse-o a entender a situação de maneira apropriada.

- Este homem não me ofendeu, e, portanto, não deve receber qualquer punição, seja na consciência ou no corpo. Vocês têm suas regras então lhe declaro que ele me tomou o cajado brincando, da maneira que fazem as crianças, e eu o persegui correndo também como uma criança.

Meu espírito se contorcia por eu ser obrigado a dizer aquilo, mas o homem morreria se eu não o fizesse. Naquele ambiente, os homens que ousassem ser honestos acabavam causando o mal, porque a luz incomoda os olhos de seres que vivem por tanto tempo em abominável escuridão.
Mas minha fala não teve o efeito que desejei. Eles espancaram o homem e o mandaram para fora mal podendo andar, embora com ambos os braços. Soltei o espírito do comandante, que passou a me temer.

- Você é poderoso, mas não aprendeu a usar seus poderes. Você não pode ter piedade dos homens miseráveis, pois eles lhe sugarão cada moeda que possuir. Deve ter piedade apenas dos homens ricos e dos poderosos, pois esses, pelo contrário, lhe recompensarão por sua piedade.
- Mas todos os homens, ricos ou pobres, são filhos da terra e a todos foi concedido um mensageiro do outro mundo.
- Bárbaro, bárbaro... Quanto ainda não temos a te ensinar? Verá que a vida não é bem como explicam seus contos.

Não entendi bem o que ele quis dizer, e sentia em meu coração que não poderia aprender nada ali, pois quanto mais eu me adentrava no lugar, mais abominável ele se tornava. O chão era coberto por pele de animais misturada com pelo. Enfeites coloridos haviam sido feitos com as árvores, profanando as leis da grande mãe. Quase nada naquele lugar era necessário, e, no entanto, os homens tomavam todo o cuidado com cada detalhe, como se fossem de extrema urgência. Havia armaduras que seguravam armas. Havia escuridão dentro delas, e ma causavam calafrios. Como se desvirtuavam os homens da grande mãe usando tais vestes! Só podiam ser amaldiçoadas.
Eu constatei quais eram as falhas daquele reino, e ainda tinha em minha memória o nomes dos homens que passavam fome com suas famílias. Achei estranho que o sábio dali não percebesse o ambiente opressor que o envolvia, mas pretendi dar-lhe a mensagem, pois a isso me orientava o sábio da aldeia, falando em meu coração. Ele se tornou meu espírito protetor, como o outro que me protegia antes de ele morrer. O espírito de um ancestral que conhecemos é mais poderoso do que um ancestral mais antigo, porque há um laço de espírito e de matéria. Isso eu descobri ao sentir com que nitidez ele falava ao meu coração, trazendo pensamentos inteiros como relâmpago à minha mente.
Entrei numa sala enorme e vazia, no fim da qual estava sentado um ancião. Havia na cabeça dele uma tiara brilhante. Tinha a cor das moedas. Na verdade parecia com as moedas moldadas como folhas de uma tiara. Ele comia a carne de uma ave, até que mordeu algo que não gostou, ao que derrubou toda a comida.

- Quem foi o maldito que colocou tanto sal na minha comida? Já não basta o sal que perco com seus roubos, ainda preciso desperdiçar sal assim na comida e torná-la intragável! Seus vermes!

O homem gritava enquanto os outros pareciam reagir com um misto de medo e tristeza. Decidi reagir

- Não percebe o senhor, como o guia dessas pessoas, que faz mal ao espírito delas com tal repreensão? Não seria melhor que as ensinasse, cozinhando você mesmo, a maneira correta de preparar o alimento?
- O que esse selvagem faz no meu palácio?! – gritou o homem. – Quem foi que lhe concedeu o direito de falar, seu indigno!?

O comandante que me acompanhava se ajoelhou e fez um som com a garganta como o de quem está doente, mas ele estava com o corpo são. Diante disso, o guia lhe falou.

- O que é isso, comandante? Procura levantar minha ira trazendo um selvagem maltrapilho para meu palácio?
- Senhor, se me conceder a honra de demonstrar o que esse selvagem faz, perceberá que seu poder sobre o inimigo será infalível. Ele tem o poder de controlar os homens, é um feiticeiro.
- O que você fala para mim no meu período de comer? Logo o senhor, que possui a cabeça clara e sóbria, vem me importunar com crendices?
- Não te importunaria se não tivesse visto eu mesmo a prova, e trouxe-o para mostrar-lhe como ele faz.

Naquele momento ele mandou trazer um aldeão. Ele trabalhava na lavoura e também era cozinheiro. O rei o detestava em especial, e embora a comida estivesse mais saborosa do que nunca, reclamava contra o homem.

- Mostre-me, então, como ele controla os homens. – disse o guia daquela cidade
- Para fazer com que nosso mestre te ouça, você precisa primeiro mostrar suas habilidades a ele.
- Não são habilidades. No entanto, se é assim que ele me ouvirá, a demonstrarei.
- Sim, mas não sobre mim, mas sobre aquele aldeão.

Trouxeram o homem para diante de mim e o colocaram de joelho. Afundei minha mão na terra que o comandante me trouxe dentro de um vaso. A terra serviu, e nela só encontrei um verme. Ele me falou da seguinte maneira.

- Como você deve saber, eu sou o orgulho. Mas não se engane sobre eu estar escondido na terra, porque não é sempre que estou aqui. Na verdade, estou aqui por vontade própria, pois eu sou um grande aliado do espírito da honra.

Fiquei muito contente e perplexo, vendo que aquele homem possuía um espírito muito valoroso dentro de si. Na verdade, o que eu senti é que ele devia ser o guia do lugar. Possuía contato com a natureza, que puder ver nos espíritos que habitavam seus pulmões, e também com os deuses. Pulsava dentro dele um sentimento de equilíbrio tão grande que ele passava pela punição de ser ajoelhado diante de mim sem quase nenhuma impressão negativa.

- Não posso controlar esse homem, pois seu espírito está em harmonia. Se quiserem que eu demonstre, posso fazê-lo no seu guia, dando a ele revelações de que ele precisa.

O comandante dos soldados tentou me impedir, mas o rei ficou curioso. Ordenou que o soldado me permitisse tentar controlá-lo. Arregaçou as mangas de seu manto colorido e andou até a minha direção, com o corpo ereto e o peito estufado, como ficam os jovens sem sabedoria quando querem se impor.
E quando eu olhei para o que estava escondido, percebi, para a minha surpresa, que não era senão um pequeno espírito, daqueles que recebem atenção na aldeia por serem os mais insensatos. Na verdade, a imagem da alma dele era a de uma criança que não recebeu os devidos limites dos pais. Seu espírito guia tinha a forma de um menino.
Quando o libertei, o espírito guia tomou o controle do guia, e ele começou a fazer travessuras com os soldados. Puxou um deles pelo capacete, jogou comida em mim, e até rolou pelo chão.
Aquele espírito não era o de um guia, então imaginei que estavam apenas testando minha sabedoria com tudo aquilo. Por isso, falei da seguinte maneira.

- Já entendi que esse homem não é o seu guia. Mostrem a mim aquele que é seu verdadeiro velho sábio para que eu possa tratar com ele sobre os problemas da cidade e sobre como estão lidando com a natureza sem o consentimento dele.

O velho, ao ouvir aquilo, se ofendeu profundamente e ordenou que me expulsassem do palácio, ignorando as recomendações do comandante sobre meu potencial. Pelo que percebi, ele gostou de  fazer tais travessuras, mas me detestou, e percebi que realmente era ele quem guiava aquelas pessoas. Não pude falar a ele sobre os que sofriam com fome e fui deixado à própria sorte na entrada do palácio, onde o ladrão me encontrou. Beijou os meus pés, o que me incomodou, então dei um passo para trás e estendi a mão para ele se levantar, ao que ele a segurou um tanto confuso.

- Você não aceita meu agradecimento? – perguntou ele
- Eu não fiz nada de bom que mereça agradecimentos. Na verdade eu menti e não aceito ser glorificado por isso. Eu queria solicitar ao guia dessa cidade que ele ajudasse os homens necessitados, mas ele é um tolo e me ignorou.

O homem bateu no peito três vezes com os olhos cheios de lágrima.

- Te seguirei até a morte. Você é um homem santo!
- Se me seguires até a morte, teu espírito será atormentado. No entanto, se seguires a ti mesmo, então seu espírito lhe mostrará o caminho.

O homem pareceu não me entender, e não me surpreendi, já que ele foi criado naquele meio abominável. Ele me seguiu até a saída da cidade, onde me esperavam os homens famintos. Quando os vi, ansiosos em seus corações por comida, meu coração foi comprimido pelos meus sentimentos. Tamanha foi a minha dor por aqueles homens que chorei ao vê-los, e diante do meu choro eles abaixaram a cabeça. Fui até eles e o homem que me seguia começou a falar.

- Esse homem disse que o mestre é um tolo! Ele é um santo e salvou a minha vida mesmo depois de eu tentar roubar seu cajado!

Os homens me rodearam e logo me levaram a uma pequena casa, na qual quatro crianças estavam fazendo alguns serviços. Lá, ordenaram que me trouxessem comida.
Por uma hora, falei a eles sobre meu lar, e me explicaram que havia maneira de impedir o roubo das colheitas. Ficaram, acima de tudo, maravilhados ao ouvir sobre a Grande mãe, e desejaram em seus corações poder vir comigo, mas não havia, na aldeia, os recursos para dar a eles o que comer.
Imerso em mim mesmo, encontrei-me com o velho sábio, que me falou, rápido como o relâmpago, da seguinte maneira.

- Venda agora o seu cajado para quem o comprar, e compre com o dinheiro toda a comida que puder. Começa agora um novo período na vida, com terríveis lutas e provações para todos os homens. Leve consigo esses homens e toda a comida que puder. Será através do coração de cada homem que ele se conectará com a terra e com os deuses dos céus.

Quando declarei que venderia o cajado, o homem que me seguia se revoltou.

- Você não pode vender o cajado! Ele é da sua tribo! Não faça isso!
- Entenda, homem, que me foi revelado que um novo período chegou, no qual o cajado não poderá nos conectar com a terra, mas apenas o nosso coração. Imagino que com as cem moedas de prata que me foram prometidas, poderei conseguir comida e levar todos vocês comigo para minha aldeia. Fica próxima, logo atrás daquela colina, cercada pelo que sobrou das florestas. Com sementes poderemos plantar e ali vocês poderão fazer parte da família e conhecer a Grande Mãe.

- Entendo que você fale com seu coração. Tenho a acrescentar que a pedra desse cajado vale muito mais do que cem moedas e que há ainda um homem que deve vir conosco. Venderei o cajado, com sua permissão, e trarei os recursos. Sementes e comida. Trarei também lanças de aço para defendermos a lavoura. Comprarei tudo o que eu puder e iremos embora, mas com um homem de valor que não merece viver nesse lugar.

O homem saiu, com espíritos poderosos o guiando. Senti em meu coração que era muito grande a quantidade de força que seu espírito possuía, e que eu fui capaz de despertar nele aquilo que era dele mesmo. Ele, na verdade, não seguia a mim, mas àquilo que descobriu sobre si mesmo e atribuiu a mim. Seria simples demonstrar isso a ele quando ele estivesse na aldeia, e fosse iniciado nos mistérios da Grande Mãe.
Continuei falando aos homens, que ouviam e gravavam cada palavra que eu pronunciava. As mulheres deles me serviam praticamente tudo o que tinham, cheia de esperanças. Apenas uma permaneceu descrente e não gostou de mim, mas não se separou dos outros.

Quando voltou, o homem trazia consigo dois burros com sementes e comida, além do cozinheiro do palácio. Quando o cozinheiro chegou diante de mim, recebi a mensagem do Velho sábio, a qual transmiti diretamente, quase sem consciência do que eu falava.

- Não poderemos levar esse homem.
- Mas por quê?
- Ele é um guia mais sábio e poderoso do que eu, e é a luz desse lugar. Não possuo sabedoria para guiá-lo, e seu espírito é de tal forma iluminado pelos deuses dos céus e pela Grande Mãe que, mesmo vivendo na terra das abominações, conseguiu alcançar sabedoria. Os homens que não vierem conosco precisam dele para que os ilumine e guie.

O cozinheiro, então, se pronunciou.

- Você atribui a mim maior valor do que possuo. É fato e sei do fundo do coração que você ainda é jovem e precisa aprender com a vida, mas não sou maior do que você. Apenas tive mais tempo e despertei meu espírito do sono em que ele foi trazido ao mundo. Contudo, sobre eu ficar aqui, lhe digo que isso sim é mensagem dos espíritos, pois me dizem a mesma coisa. É meu dever ficar aqui, e logo serei morto por isso, mas ficarei. Por aqui, sou dos poucos que ouvem os espíritos, e sem mim os homens mergulharão no abismo, dominados pelas trevas sem terem a quem recorrer.
- Entendo. Eu não conheço o que é meu potencial, se sou poderoso ou se não sou. O que te falei não fui eu quem disse, mas o Velho Sábio da minha tribo. Pode ser que no futuro eu seja capaz de ter sabedoria igual à tua, mas preciso ainda viver com a terra e na terra, como você disse. Eu falava, no entanto, sobre o presente momento, no qual não possuo sabedoria para lhe guiar, tampouco para poder entender aquilo que você precisa. – respondi.
- Você é um bom jovem. Estamos entendidos. Levem consigo ainda esses instrumentos para lavrar a terra que construí. Funcionam melhor do que esses que compraram. Os preparei justamente para isso.

Meu coração se encheu de admiração por aquele homem e por ele conseguir alcançar a sabedoria sem cajado e sem ser iniciado numa aldeia. Repetia-se na minha mente aquilo que o velho me disse. Que agora é com o coração que nos ligamos com os deuses e com a grande mãe. O cozinheiro já sabia disso, e já vivia assim. Precisei vir até a terra das abominações, onde ele aprendeu isso, para também aprender. Nenhuma parte do meu tormento ali foi em vão, mas foi planejada pelos deuses.

Seguimos para a aldeia, e todos nos olhavam enquanto partíamos. O rumor havia corrido entre os soldados sobre eu ter poderes para controlar os homens, e eles me temiam, motivo pelo qual não tentaram nos impedir. Mas vi em meu coração que aquilo era só o começo, e que o guia tolo ainda iria querer nos afligir.
Um dia eu terei que voltar, e quem sabe ajude o cozinheiro ou outro guia de verdade a se tornar o verdadeiro e legitmo sábio daquela cidade. Por agora, no entanto, não possuo sabedoria para isso, e me reservo a viver em harmonia com a natureza, ouvindo o que ela quiser me dizer para me preparar, pois, apesar de eu não o entender bem, parece que ainda há propósitos a serem realizados.

- E foi assim a minha aventura pelo reino das abominações, onde me viam como domador de mentes, quando na verdade o que eu quero é libertá-las. Fiquem atentos, meus irmãos, e aceitem entre nós os novos e os ensinem sobre os caminhos da natureza.

Naquela noite aconteceu uma festa, e todos dançaram e se alegraram com os novos membros da família. Passaram a trabalhar conosco e nos ensinaram técnicas para a construção de nossas casas, para a nossa plantação e também para a nossa defesa, o que, percebi na viagem, se tornou de grande importância. Um novo período começou. E espero ter sabedoria para viver nele...

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