Sim, a carta é pra você

Já faz tempo que não te escrevo, não? Nem sei quem você é!
Eu fui lá fora. Quero dizer, fui arrastado pra lá. Descobri que por lá as coisas não são como eu imaginava. Há todo um mundo onírico, sabe? Demasiadamente idealizado. Lá, onde o sol se recusa a bater, há homens com honra, e outros sem. Onde eu fui quem morre primeiro é quem não merece. Quem merece também morre. Às vezes cedo, as vezes não.
Lá fora são curvas que governam o mundo, sabe? As curvas do corpo de uma mulher, as que tomamos na vida. O problema de uma jornada repleta de curvas é que você nunca sabe onde vai chegar. Você olha e imagina, mas no fundo não sabe de nada. É tudo imaginação. Alguns têm a sorte de descobrir a tragédia apenas tardiamente, mas outros a descobrem cedo.
Descobri.
Não, a vida de um homem não vale tanto na vida real quanto no nosso mundo imaginário. Na vida real, um homem é um número. Alguns, os gananciosos, são números com muitos zeros.
Eu sei o que você vai me dizer. Que homens possuem almas. Mas de que adianta se eles vivem num mundo que exige que sua alma nunca venha à tona? Esses homens morrem cedo, lad. Morrem tão cedo que na maioria das vezes nunca entendem o que pode ser a alma. E quando entendem, perdem a consciência.
O máximo que podem aprender é a ter honra. A respeitar uma lei, aceitar algo acima de suas cabeças. Eles vivem em mundos separados, cada um no seu jardim...
A carta é pra você, mas não é sobre você e nem sobre mim. Ela é sobre a vida. Sobre se sentir vivo e perceber que isso em breve será sentir a vida ir embora.
Eu posso sair amanhã ou na quarta, e, nalgum desses dias, um daqueles metais voadores pode perfurar meu crânio, um carro pode me lançar a alguns metros de distância. Você sabe que tudo isso é muito efêmero.
Nós falamos muito sobre o mundo metafísico e até mesmo sobre o mundo psicológico.  Exploramos juntos o poder que um homem pode ter sobre a mente e sobre o corpo do outro.
Mas vamos encarar a verdade: a realidade desse mundo nos torna impotentes. Não somos mais espíritos. Todo o poder de um homem astuto se vai quando ele leva um tiro na cabeça.
Sejamos sensatos: tudo isso é muito maior do que imaginamos. É muito maior do que poderíamos imaginar.
Eles me disseram que a cada dia minha fé seria testada. Esqueci de avisar que eu não tinha fé.
Agora o que eu sei é que uma bala pode ser mais rápida que um pensamento. Agora eu tenho fé no fato de que a morte é certa, mas a vida não.
Eu vou construir idéias que serão capazes de curar a mente de homens. Já construíram isso, e conforme o tempo passa, nós chegamos aqui pra reconstruir, readaptar à nova época.
Mas dessa vez tem algo a mais. Eu não vim mostrar isso. A cura, uma cura. Meu espírito me carrega por terrenos sombrios. Cada vez mais podres são os caminhos para os quais sou levado, e é cada vez mais perigoso e sem volta o meu destino. Será que sou mesmo um mensageiro da morte?
Eu tenho ainda um lugar entre os anjos, lad? Lembram de mim por aí? Avise-os que talvez eu tenha ficado tempo demais na terra dos demônios. Nunca poderei ser um deles, mas perdi o brilho dos meus olhos. Eu não posso mais voar, bem aventurado pelos céus do universo. Não posso mais. As minhas lágrimas secaram.
Nem sei o que estou escrevendo. Você existe mesmo? Quem é você, quem sou eu, quem somos nós?
Essa carta é sobre a minha morte. Isso mesmo. Sei que não acreditamos na morte do corpo, e que concordamos sobre a nossa alma se conservar por um tempo tão longo que nos arriscamos a chamá-lo de eternidade, por ser tão longo que não o entendemos. Mas eu hoje morri. E não precisa guardar a data, porque tempo não existe. Amanhã devo nascer de novo, com as marcas das feridas pelo meu corpo. Então viverei mais um pouco e serei assassinado mais uma vez. Ser assassinado nesse mundo é um destino do qual poucos podem se livrar.
Porque enquanto o pedaço de metal voador perfura a cabeça de um homem, seja ele quem for, ele também atinge a minha alma, e ela se torna mais dura, mais ferida.
Alguém morreu hoje, e o que eu vou fazer?
Morrer também!
E continuar morrendo enquanto os pedaços de metal continuarem a matar os homens. Acho que vou morrer tanto, que me tornarei imortal. E aí a morte dos homens se tornará tão comum, que nem aos milhares, ao milhões, poderá me comover. Quando e se esse dia chegar, deixe de esperar minhas cartas. Estarei ocupado demais existindo como uma rocha. Só a chuva poderá me corroer, e me transformar em pequenos pedaços. Aí, esses pequenos pedaços entrarão novamente no ciclo de todas as coisas.
Sim, lad. A carta é pra você. É pra todos e pra ninguém...

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