Acerca do “sine qua non” do estabelecimento de uma forma de pensar



Abandonei esse blog por uma série de razões, dentre as quais apenas uma eu considero relevante pro momento. Imaginei que não havia leitores e que, portanto, eu deveria buscar outros meios de comunicação, especialmente interpessoal em fóruns.
No entanto, porque uma pessoa pareceu interessada em continuar lendo as besteiras que escrevo aqui, decidi produzir mais uma de minhas racionalizações.
Aqui, falarei do elemento psicológico básico através do qual uma forma de pensamento se estabelece.
Logo adianto aos mais ingênuos que esse elemento não é a razão, não é a verdade e, tampouco, uma soma de ferramentas de manipulação.
Isso porque a razão em si é um conceito nebuloso e guiado por critérios. Esses critérios variam entre os indivíduos e, portanto, acabam surgindo diversos conceitos do que vem à ser a própria racionalidade. Daí já é estúpido alguém dizer que fulano está com a razão e seu oponente não: porque ambos estão com a própria razão e se não possuem critérios próximos jamais poderão chegar a um acordo obre coisa alguma. Como não há um critério racional que esteja acima dos demais e que, assim, possa regular e explicar a todos, não podemos presumir que a razão é o Sine qua non. Antes, é uma ferramenta tão eficaz quando a manipulação, propaganda, etc. que atinge um certo grupo de indivíduos e nada mais.
A verdade é um termo absurdo. A suposição ingênua de que, através da razão, encontraremos a verdade é completamente egocêntrica. Isso porque, em primeiro lugar, se presume que só existe um critério real para guiar a razão, e, em segundo, porque se presume que só há uma “verdade” a qual poderíamos chegar dentro desses critérios. Como já disse, é possível selecionar diferentes premissas de pensamento que são, em si, irracionais (não podem ser provadas ou refutadas e são aceitas como auto-evidentes quando na verdade não são.). Além disso, mesmo dentro de certas premissas, é possível o indivíduo entrar em contato com N elementos empíricos e, através deles, chegar a diferentes “verdades”, não havendo, portanto, nenhum motivo para que se torne legítima a afirmação de uma “verdade”.
Mas meu objetivo aqui não é falar o que não é.  O que pretendo é determinar a principal razão pela qual uma forma de pensar se estabelece.
Mas o que quero dizer como uma forma de pensar?
É simples. Falo de um conjunto de premissas que orientam ações e pensamentos aceitos por um grupo e pessoas diferentes entre si.
Para isso, vou recorrer ao pensamento cristão. Para quem está familiarizado com o blog e sabe que já critiquei a estrutura do pensamento cristão, se preparem pra uma surpresa. Segundo certas premissas, estarei, aqui, usando o cristianismo como um exemplo “positivo” até certo ponto. Provavelmente esse texto poderá refutar um argumento comum entre os cristãos, que usa Deus para explicar a razão pela qual essa religião se multiplicou. No entanto, também refuta uma afirmação minha, de que o cristianismo se reproduziu por ser um tipo eficaz e bem elaborado de praga.
Atualmente há o ateísmo, com suas próprias premissas com uma própria cosmologia plural (até certo ponto), mas no passado não existia e as pessoas não se sentiam revoltadas por isso.
Aquino e Agostinho trouxeram as perspectivas Aristotélica e Platônica para o cristianismo, e diversos subgrupos se formaram dentro desse. Alguns acreditavam que a ceia era um símbolo de cristo, outros que era efetivamente a carne e o sangue dele. Alguns acreditavam que Jesus era possuidor de suas vestes e outros que não. Claro que todos dentro da premissa de que Deus existe, Jesus é seu filho, etc., mas havia uma enorme variedade. Mente quem sai por aí dizendo que era proibido pensar na idade média. Ficam imaginando que as pessoas daquela época pensavam como as de hoje, que vão além das premissas cristãs (devo lembrar que falo da Europa?).
Mas a verdade é que o homem da época do cristianismo não pensava como o moderno, não lia Richard Dawkins e possuía uma ciência bem conformada dentro dos padrões da teologia. Na verdade, na época eles recorriam com freqüência à Deus como hipótese.
Gostam de usar o julgamento de Galileu como exemplo, mas a verdade é que, segundo o paradigma da época, ele estava refutado. Além disso, ele não tinha nenhuma evidência para o que dizia que não seu telescópio questionável e sua imaginação.
Mas voltando ao assunto, porque é que o cristianismo se firmou como uma forma de pensar dominante? É bem simples: porque não havia um topo, alguém pra decidir por último o que era verdade. Havia diversas formas de se pensar dentro do cristianismo, e os indivíduos conflitavam seu pensar dentro dessas premissas. Não só isso: havia espaço para uma enorme variedade de tipos psicológicos e vivências. O pensamento cristão se multiplicou porque permitiu que as pessoas manifestassem as mais diferentes características do homem na época, não porque as moldou.
Quando Agostinho e Aquino trouxeram o pensamento dos gregos para o cristianismo, isso permitiu que essas formas de pensar o mundo existissem dentro do cristianismo e que, assim, o cristianismo englobasse dentro de si os tipos mais diferentes de pessoas.
Apesar das diferenças culturais, das diferenças psicológicas e até as políticas, o cristianismo conseguia englobar todo o pensamento europeu daquela época.
Até que, é claro, o pensamento quebrou as barreiras do cristianismo, e esse não acompanhou tão rapidamente as mudanças. Claro que hoje há cristãos evolucionistas, mas certamente o cristianismo não possui mais a força hegemônica de antes.
Isso porque atualmente não há mais como se formarem pensamentos. Temos internet e diversos meios de comunicação que não podem ser controlados apenas por um grupo com uma forma de pensar. Tem tanto a sabermos, tanto para pesquisar, que dificilmente alguma ideologia conseguirá quebrar a barreira de todas as outras.
É sempre ingênuo, no nosso tempo, falar de uma forma de pensar ortodoxa na sociedade, porque parece que a cada canto que você vá, acaba encontrando alguém que pensa diferente.
No entanto, aquilo que deu força ao cristianismo pode dar força a outras formas de pensar.
Temos como exemplo a psicologia do Inconsciente (de Freud, Jung, Reich e outros) e o Marxismo.
Em ambos os casos, as premissas básicas de pensamento se multiplicaram e foram interpretadas de diversas maneiras. Dentro da psicologia do Inconsciente (e não da psicanálise, porque nessa Freud tratou de expulsar alguns que pensavam diferente) o pensamento se multiplicou para a arte, para a concepção de sociedade e diversos aspectos da vida humana. Não só isso, como, em cada um desses aspectos, sob diversas perspectivas. O pensar em psicologia do inconsciente se tornou amplo e, portanto, acabou se difundindo.
No marxismo é a mesma coisa. Há vários “marxismos” diferentes, que apresentam diversas perspectivas e relação com diversas áreas da vivência humana. Interessante, aliás, que muitos marxistas também são pensadores da psicanálise.
É isso e não razão ou a “veracidade” que torna uma forma de pensamento difundida.
O que nos leva à conclusão desse texto, que volta até os grupos revolucionários. Esses, no presente, costumam pensar que basta eles difundirem uma idéia. Pensam que as pessoas não pensam como eles porque ainda não os ouviu falar e que vão efetivamente mudar o mundo através do trabalho de difusão de idéias.
Ora, aí está o elemento da propaganda, que pode também envolver a transmissão de informações com técnicas de manipulação. Essas técnicas variam de estímulos ao Inconsciente à tentativas de atingir o sentimento do interlocutor com trilhas sonoras tocantes e imagens de impacto. Seja qual for a tática de manipulação, ela se anula pela multiplicidade das idéias na sociedade em si. Afinal, na presença de propagandas contrárias vindas de todos os lados deve haver algum critério interno de seleção. Senão nosso cérebro fritaria tentando processar tudo.
Daí decorre que de nada adianta ser um devoto e divulgar uma forma de pensamento se ela não é ampla o bastante. Também de nada adianta manipular, usar sua razão ou afirmar que se trata da verdade.
Na verdade, até mesmo quebrar a barreira lingüística é difícil: com freqüência falamos de coisas idênticas na forma de pensamento, mas expressamos com termos diferentes. Cada um entende os termos do outro de maneira diversa e acabam pensando que discordam quando na verdade uma “previsão” baseada em ambas as formas de pensar seria idêntica.
Não adianta mais pregar, não adianta mais achar que o mundo será mudado por um conjunto de idéias. Pelo contrário, é precisamente a variedade que torna o mundo mais humano. Porque por mais que um indivíduo seja Outsider, por mais que seja estranho, algo há nessa sociedade que seja adequado a ele. Não há como uma pessoa ser completamente estranha ao mundo.
Antes, se alguém conseguir estabelecer um meio de pensar hegemônico, todos se tornarão robôs, com uma intuição íntima de que algo muito errado se passa e uma sensação irreparável de completo desajuste.
Para uma ideologia nova se difundir e ser capaz de lidar com a variabilidade do ser humano, então, é necessário que não existam líderes. Exatamente isso. Porque jamais pode a visão de um homem apenas ser ampla para guiar um grupo quando ele se tornar suficientemente grande. A não ser que seja um grupo religioso. Nesse caso, no entanto, ao invés de emancipar a humanidade estaríamos trabalhando para restringir sua liberdade.
Não se pode pensar que um homem é inteligente o bastante para guiar um grupo grande, porque a quantidade de pessoas diferentes nesse grupo exige que o pensamento grupal englobe isso tudo. De outra maneira, grupo se torna uma massa e os membros perdem a autonomia. Tornam-se autômatos.
Antes, se houver diversos pensadores dentro da linha geral do grupo apresentando diversas perspectivas para entender as atividades do grupo, ele terá plasticidade para aceitar em si uma grande variedade de pessoas. Assim, o grupo pode ganhar um volume considerável e, sob diversos níveis, efetivamente mudar o mundo. Não quer dizer que transformarão o mundo num paraíso idealizado. Até porque, dentro do grupo certamente haveria divergências demais para isso. Mas certamente as linhas gerais do grupo se tornariam mais influentes.
Para isso, poderíamos pensar no Movimento Zeitgeist. Segundo fui informado, o movimento já possui meio milhão de membros por todo o mundo, mas a variedade interna é pequena.
Como linhas gerais desse movimento, vi as premissas de “mudança constante” e união. E aceito essas premissas, pois se adéquam à minha realidade psicológica.
No entanto, apesar de essas premissas serem bem amplas, as idéias apresentadas no movimento são estreitas. Com fixação pela forma comportamentalista de entender a mente humana, criam um “plano de ação” baseado apenas nela. Dizem que Jacques Fresco é um grande gênio, autodidata que já estudou as mais diversas disciplinas, mas não vejo nenhuma genialidade nessa cosmovisão limitada da psicologia dentro do movimento. Antes, há psicologias. Diversas perspectivas, muitas das quais eu conheço só de ouvir falar (de ler em livros de introdução à psicologia), e bem interessantes que tratam de fatos não observados na perspectiva comportamentalista acerca do ser humano.
O movimento é baseado num projeto, que lida com o ser humano apenas com a perspectiva comportamentalista e imagina que os seres humanos serão simplesmente condicionados a não serem destrutivos pelo meio. Dentro dessa cosmovisão, colocam que não será necessário haver leis ou política.
Ora, isso é completamente absurdo. Dizer que o ser humano não precisa de leis implica encerrar a discussão sobre o comportamento humano. Não sei de alguém que seja capaz de fazer isso. Sobre não haver política, nesse caso haveria totalitarismo. Dizem que as decisões seriam tomadas com base no método científico, mas, como Feyerabend aponta,

“O chauvinismo da ciência é um problema muito maior do que o problema da poluição intelectual. Pode até ser uma de suas maiores causas. Os cientistas nãos e dão por satisfeitos em organizar seus próprios cercadinhos de acordo com o que consideram ser as regras do método científico, mas querem universalizar essas regras, querem que ela se torne parte da sociedade em geral e usam de todos os meios à sua disposição – argumento, propaganda, táticas de pressão, intimidação, práticas de lobby – para atingir seus objetivos.”

Para mais além, pretendem que esse método seja acrescentado a um computador, responsável pelas decisões.
Com isso, eliminam a possibilidade do pensamento amplo, da integração da variedade humana. Para alguém ser ajustado nesse sistema, precisa acreditar no que eles dizem ser o método científico e também na concepção de psicologia deles, segundo a qual não haveria criminalidade sem a estratificação social.
Além disso, apresentam uma sociedade sem moeda corrente, o que já limita drasticamente as possibilidades para aqueles que aceitam os mais diversos tipos de monetarismo. Eles simplesmente presumem que o ser humano só usa o dinheiro como instrumento para lidar com a escassez e que, sem ela, não haveria necessidade de uma moeda corrente, porque haveria recursos abundantes a todos. Esquecem, no entanto, que alguns podem simplesmente discordar disso.
Para dar um exemplo, precisamos ver que, por mais que exista abundância de energia, comida, água e materiais de construção (para moradias), ainda assim haveria muitos bens e serviços na sociedade que variam em qualidade. Além disso, certamente existiriam funções, trabalhos a serem feitos. Ora, não há porque eliminarmos o ganho material como forma de motivação. Não é porque há abundância que um indivíduo não irá querer ter os produtos de melhor qualidade se ele trabalhar por isso. E, de qualquer maneira, uma sociedade que oferecer todos os bens de serviço em troca de nenhum trabalho desestimularia os seus membros de realizar o trabalho interno necessário. Isso, é claro, se estivermos lidando com a tecnologia de hoje e não com outra, imaginária, de um futuro próximo (daqui a 50 anos, digamos). E mesmo que exista tecnologia para no libertar dos trabalhos de produção de certos bens de consumo, ainda há profissões que não podem ser executadas por robôs e não vejo razão para negar com tanta veemência o tipo material de recompensa pelo trabalho.
Querem eliminar o dinheiro pelo fato de que, através dele, homens dominam os próximos para enriquecer por meios ilícitos, mas parecem nunca ter entrado em contato com o anarquismo de posse, por exemplo, onde isso não seria possível.
Além disso, a despeito do fato de que aceitam religiosos no movimento, preferem que o pensamento religioso não seja envolvido com este. Ora, foi do taoísmo que eu tirei minha premissa de mudança constante. Por causa de uma vivência religiosa e nada mais. A outra, a da união, também tirei de outra religião. E, a despeito do fato de que o pensamento dessas religiões poderia acrescentar muito ao movimento, Joseph declara que o movimento não admite em si pensamento religioso. Mas o pensamento religioso é tão humano quanto o científico ou qualquer outro e não tem sentido abrir mão dele dentro do movimento.
E certamente não são só esses questionamentos a serem colocados dentro das premissas de mudança constante e união. Esses são só os meus. Certamente muitos pensadores, pessoas que são, em si, diferentes, possuem diversas objeções em relação às idéias de Fresco e Joseph.
No entanto, o movimento possui uma cabeça, e por isso não admite em si a diversidade.
Mesmo que consigam reunir uma comunidade de pessoas que pensem de maneira análoga e construam uma cidade-modelo, e que essa cidade gere renda e se desenvolva (o que é pouco provável), logo na segunda geração, os filhos dos pioneiros, pensarão diferente e não poderão se adaptar ao ambiente. Para isso bastaria eles terem contato com o “mundo lá fora”.
Uma ideologia que possui líderes e não variedade de pensamento está fadada a se sustentar apenas através da fé. Aí entrará em conflito com todas as outras ideologias baseadas em fé, se tornará uma convicção rígida e entrará em contradição com o próprio pressuposto de mudança constante.
Em suma, qualquer forma de pensamento, seja nova ou não, só pode se estabelecer de maneira efetiva se englobar a variedade de indivíduos. Caso contrário, será só mais uma forma de fanatismo vazio em termos de implicações práticas na mudança da sociedade e também em estímulo da criatividade e do desenvolvimento humano.

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