E se tivesse dado errado?


Entrei dentro do ônibus. Como esperava, fiquei de pé, com aquela porra de mochila pesada. Pelo menos fiquei num ponto fixo. Às vezes ficam tão lotados que você fica no meio do corredor, entre outras pessoas. Naquela posição, pelo menos, dava pra alguém segurar minha mochila. Quase sempre tem uma alma caridosa.
Dessa vez foi diferente: demoraram meia hora pra me oferecer, e isso só foi por causa da minha técnica de coloca a mochila pra frente só com uma alça, dando a ela a possibilidade de balançar e quase acertar a cara de quem está sentado. Sempre funciona.
Dentro do ônibus é sempre o mesmo tédio: várias pessoas que ficam se olhando, daí quando a outra percebe e olha de volta, fingem que não estavam olhando. Uns fecham os olhos, outros fingem que tem algo mais ou menos na mesma direção. Os mais amadores viram a cara rapidamente.
Lembrei do dia que passei. Não me lembro de outro dia em que tanta coisa tenha dado certo de uma vez só. Cheguei na data certa, no horário certo sem saber. Resolvi tudo que havia para ser resolvido.
Como sempre, comecei a imaginar, e rever detalhes que poderiam ter dado errado.
Na inscrição do Sisu parece que houve um erro e muita gente recebeu um parabéns enganoso. Não foi o meu caso, mas e se fosse? Eu nem tinha impresso o papel como a menina que estava lá. Tava fodido, não conseguiria provar que me enganaram. Mas nem enganar, enganaram: o sistema falhou e foi só isso. Eu teria que pagar a porra da faculdade particular e não poderia continuar minha pesquisa. Pelo menos tinha uma criatura deliciosa naquela turma de faculdade. Pra ser honesto, não lembro de ter visto diante de mim uma garota tão linda e gostosa como aquela. Puta merda, não parece que é de verdade. Nesse ponto e tivesse dado errado eu ficaria só olhando pra ela, imaginando coisas que tenho pra falar. Pra uma aluna de psicologia? Puta merda, poderia falar pra cacete. Se eu não fosse travado, na verdade, imagino que teria chances. Quem sabe se, por força maior, como já aconteceu antes, eu não travasse. Nesse caso, só pelo olhar dela, pelo comportamento e pelo teor da pergunta que ela fez ao professor, eu manipularia a mente dela com tamanha facilidade que minha satisfação estaria garantida. Quem sabe eu até me apaixonaria por ela? Mas, no final das contas, eu queria mesmo é entrar nela. Acima de tudo.
Só que deu certo, e a gostosa/linda já era. Aliás, conheci outra gostosa quando estava fazendo inscrição. Vai fazer jornalismo e tem mesmo pinta de jornalista. Gostosinha, loirinha, estilo Barbie. Puta merda, espero que ela nunca leia isso. Mas certamente me imaginei entrando nela, e com direito a fetiche da profissão e tudo. Foi quando eu descobri que existe fetiche de jornalista. Imagina eu comendo a Padrão?! Imagino demais.
Eu precisava tirar cópias de um documento e ele tinha sumido. Fui descobrir que ele estava na minha mochila. Era um certificado da biblioteca que eu havia pegado pra poder cancelar a matrícula na faculdade particular.
Imagina se eu tivesse perdido essa merda? Cacete, demorei duas horas pra ser atendido, daí sem esse documento a mulher me mandaria na biblioteca buscar. Daí quando eu estivesse de volta, a porra da secretaria estaria fechada. Por um dia a mais eu teria que pagar a mensalidade, que vencia naquele dia mesmo. Aliás, cheguei 7 e o negócio fechava 9. Se eu chegasse 7:30 já era. Mas cheguei na hora certa e no dia certo. Não paguei nada e me dei bem.
Daí tinha o ônibus da faculdade. Saí da secretaria com a matrícula cancelada as 9 e o ônibus era só 11. Só que às vezes acontecia de o pessoal sair mais cedo. Eles combinavam com todo mundo que vinha nele. Como eu fui na outra faculdade de manhã, não vim nele, e o pessoal podia ter combinado de ir sem mim.
Fui até o ponto, comprei um podrão x-tudo e comecei a imaginar.
E se eu perder o ônibus?
Ia ficar perdido em rio comprido, na porta de uma universidade dentro da qual dava pra ver tiro voando de noite, como uma pequena faísca cruzando o céu. Não tava com grana pra ir pra casa, tampouco estava em horário pra ir longe o bastante para chegar na casa do parente mais próximo. Não tinha como dormir na rua, porque é perigoso demais. É como um macaco dormindo no chão, ao invés de num galho lá no alto. Único lugar acessível era a General Canabarro. Eu pega a são Francisco Xavier e chegava lá. Na casa dela.
Já faz quase dois anos que não nos falamos. Isso porque eu sou um egocêntrico, manipulador e filho da puta. Se bem que a situação é mais complexa do que coisa de vilão e vítima, mas que se dane: a prática é que o pessoal de lá me detesta.
Teria como eu me virar no dia seguinte, lá pra 5 da manhã, então quem sabe ela deixaria eu dormir num banco que fica no pátio do prédio dela?
Voei pra lá enquanto comia meu podrão (caro e que demorou pra sair).

- que você ta fazendo aqui? – perguntou ela.

Ela tava com aquele mesmo pijama da época em que eu passava dias nessa casa. Ele já era velho, e provavelmente hoje já nem existe mais. Só que não sei qual é o pijama dela hoje, tampouco se a aparência dela é a mesma de então. Depois fui descobrir que o cabelo dela agora é preto, mas naquela noite eu não sabia, então ele me veio com luzes. Eu sempre quis que fosse preto, mas ela nunca ligou. Enfim, depois de enrolar, respondi.

- Eu preciso de ajuda.
- porra, já são meia noite e você vem na minha casa? Porra, vai embora.
- Esse é o problema. Não tenho pra onde ir. Preciso de um lugar pra passar a noite.
- Não te falei que minha mãe não te deixa subir nem pintado de ouro?
- É só pra eu não dormir na rua. EU fico ali do lado, naquele pátio. Tem um banco ali. Eu nem vou dormir mesmo.

Pensei que ela estava pronta pra se vingar de todo o aborrecimento que eu já trouxe pra ela. Como eu fiz tudo de uma vez só, num pequeno instante trouxe todo o aborrecimento, ela poderia revidar naquela noite, me fazendo dormir ali pra ser assaltado e me foder. Mas ela abriu o portão. Quer dizer, ela falou com o porteiro e ele abriu o portão.
Entrar naquele lugar, por mais tenha sido minha imaginação, me causou uma impressão profunda. Eu terminei meu podrão, mas continuei ali imaginando.

- Como ta sua garganta?
- Ah, ta melhor.
- e teu tornozelo?
- eu to bem.
- Ah.

Ela não ia cair no mesmo truque duas vezes. Antigamente eu usava minha preocupação pra sensibilizar ela. Tudo bem que eu me preocupava mesmo, mas eu sabia trazer a devida recompensa pra minha preocupação. Naquela noite ela estava diferente. Permaneceu imune à minha preocupação, mas ficou ali sentada no banco, com as pernas de fora no frio.

- Você não tá com frio? – perguntei
- Porque você fez aquilo? – ela me fez a pergunta ignorando minha fala.

Eu olhei pra cima, pra varanda da casa dela. Eu gostava daquela varanda. Uma vez eu vi dois pombos transando dali. Coisa sem graça, coitado do pombo. Fica correndo a vida toda atrás da parceira e não faz quase nada com ela.

- É tão difícil assim de responder?

Eu dei uma risada e o cara do podrão ficou me olhando. Porra, até dentro da minha própria imaginação eu saio de foco pra imaginar dentro do imaginário!

- Eu fiz aquilo porque eu sou um narcisista. – respondi com segurança
- Como assim?
- Eu não sei quem é você, Paula. Nunca soube. Eu inventei uma Paula e queria que você fosse ela. Como você não era, a despeito de todo o meu esforço e até mesmo a minha manipulação, eu me revoltei.
- Pera aí, você me manipulava? Seu cretino!
- Se serve de alguma coisa, naquela época eu nem percebia. Eu só fazia de tudo que estava no meu alcance pra “despertar” em você aquilo que eu imaginava e queria. Isso incluía te induzir a certas opiniões e tudo mais. Na verdade eu achava que estava te despertando, mas estava é te manipulando. E em diversos aspectos você reagiu e mostrou quem realmente era. Isso que me frustrou: foi minha cegueira em não conseguir te ver.
- Você é um idiota.
- Eu sei. Ainda posso ficar aqui?
- Fica aí se quiser. Boa noite.

Ela subiu com aqueles passos que ela dá quando fica aborrecida. Como que pisando no chão para feri-lo e com a cabeça um pouco inclinada pra cima. Eu sempre ficava achando que ela ia ferrar o pé quando andava assim. Mania de achar que ela é feito de vidro fino, na época.
Deitei no banco e tentei olhar pras estrelas, mas as lâmpadas dali não deixavam. Da varanda dela dava pra ver.
Fechei os olhos, daí, quando eu abri, ela estava sentada na varanda me olhando. Quando ela percebeu que eu estava olhando, entrou e fechou o vidro.
Nesse momento, por causa do meu fone de ouvido, não percebi uma moto passando. Quase me atropelou. Um susto do cacete.
Fiquei imaginando se eu fosse atropelado. Tava fodido. Provavelmente eu morreria ali mesmo e ninguém reconheceria meu corpo. Iam pegar meu celular e ligar pra minha mãe pra avisar que morri. Eu deixaria uns livros interminados um punhado de amigos e uma vaga preenchida na faculdade federal. Todo esse esforço pra construir a porra da tese pra ser atropelado por uma moto e morrer.
Bem, se eu ficasse paralítico pelo menos eu não deixaria de fazer o trabalho. A não ser que ficasse com a mão incapacitada, como aquela mulher da novela.
Revi minha idéia sobre a consolidação de uma ideologia. Pensei nos textos de uma amigo meu sobre o estímulo financeiro dado aos autores do neo-liberalismo.
Iguais ao Freud, que construiu um império e não um conjunto de idéias. Eu não poderia usar o nome psicanálise no trabalho. Decidi ali usar o nome psicologia do Inconsciente, porque bem sei que Jung e Fromm, que vão ser os principais autores na obra, não são propriamente psicanalistas no sentido Freudiano do termo.
Lembrei das influência de Jung, com Flornoy e Janet, que os freudianos ignoram pra dizer que Jung foi um seguidor de Freud, e não um colaborador. Bando de noobs.
Quando entrei no ônibus, quis imaginar como seria se ele quebrasse, mas acabei dormindo.

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