Uma brincadeira sobre as implicações éticas do conflito acerca da origem da vida

Introdução

Como o último post recebeu alguma atenção, me senti motivado a levar adiante minhas brincadeiras a esse respeito. No presente texto, pretendo apresentar as implicações éticas e sociais do conflito em torno da origem da vida. Isso porque não se trata apenas de como a vida surgiu, mas sobre interpretações de como a biosfera se organiza. É, em última análise, uma questão filosófica.
Como o evolucionismo é uma visão hegemônica, sendo considerado por muitos uma questão já além do questionamento, falarei primeiro sobre as implicações dessa concepção na história e sobre minha leitura da marca que ela deixa na nossa sociedade atualmente. Depois vou especular filosoficamente sobre como a brincadeira do outro post poderia basicamente curar um grande mal da humanidade. Sim, parece bobagem. E talvez seja mesmo. Mas é divertido, então vou escrever.

Evolucionismo e suas implicações

Para falar sobre isso recorro, primeiramente, a um comentário de Marx¹:

“‘Darwin, que estou relendo, diverte-me quando diz que aplica a teoria de Malthus nos animais e também nas plantas, como se em Malthus não fosse brincadeira aplicar a teoria, inclusive da progressão geométrica, não às plantas e animais, mas aos homens. É notável ver como Darwin encontra nos animais e nas plantas sua sociedade inglesa, com a divisão de trabalho, a competição, a abertura de novos mercados, as ‘invenções’ e a ‘luta pela existência’ de Malthus” (apud. Marco, 1987, p, 75-76)6.”

E Engels:

“‘Toda a teoria de Darwin baseada na luta pela vida é simplesmente a transferência, da sociedade para a natureza animada, da teoria de Hobbes do bellum omnium contra omnes e mais ainda: da teoria burguesa da livre competição e da teoria malthusiana sobre a superpopulação. Uma vez levada a cabo essa proeza (cuja justificação incondicional é ainda muito problemática, especialmente no que se refere à teoria malthusiana) é muito fácil transferir de volta essas teorias, passando-as da história natural para a história da sociedade; e, afinal de contas, é uma grande ingenuidade pretender, com isso, haver demonstrado essas afirmações como sendo leis eternas da sociedade’ (Engels, 1985, p. 163).”

Até que ponto podemos dizer que a teoria de Darwin é uma projeção de seu convívio social, sobrepondo a organização da sociedade inglesa à natureza é determinar. Mas certamente a teoria foi aceita muito porque estava (e está) em concordância com o sistema sócio-econômico. Porque olhar para a natureza a partir de tal ótica foi interessante para tal Zeitgeist.

Mas de que mentalidade estou falando?
Da capitalista, onde surge a noção de indivíduo responsável pelo próprio destino. Nesse momento, no início do iluminismo, onde o “um por todos e todos por um” foi substituído por “cada um por si de Deus por todos”, até que Deus morreu e somente o cada um por si sobrou.

Nesse caso, o individualismo parece andar lado a lado com o evolucionismo, na medida em que ele concebe a estrutura da natureza como milhares, milhões de indivíduos em constante competição, da qual resulta a variedade do mundo.[2]

Em nível social as conseqüências foram devastadoras. A eugenia, que hoje não é mais aceita, procurou “melhorar” a espécie humana, esterilizando a matando milhões de pessoas que, segundo o pensamento da época, foram consideradas inferiores. Culturas foram submetidas à visão etnocêntrica do homem europeu, que buscou classificá-lo como primitivo, menos desenvolvido, legitimando diversos tipos de violência e imposição cultural. Vimos surgir diante dos nossos olhos um sistema econômico cada vez mais competitivo, abonado pela própria natureza para que continue funcionando dessa maneira.

Na vida pessoal, pensar que as próprias leis da natureza abonam o individualismo gera um sem-número de comportamentos aberrantes. Por exemplo, apesar da enorme inflação da nossa densidade demográfica, muitos ainda hoje conservam preconceitos contra a adoção, afirmando que crianças abandonadas carregam “genes ruins” ou que simplesmente querem passar a própria carga genética (ou o sangue, nos mais leigos) adiante. Assim, mesmo no caso de ser menos trabalhoso adotar do que tratar um problema de infertilidade, opta-se por um filho biológico, pois se não há uma conexão genética nós estamos lutando contra o nosso próprio interesse.

Outro exemplo é o de que, em benefício próprio (e em reverência à mãe natureza) os homens cometem inúmeras atrocidades uns com os outros economicamente. Porque, afinal, ajudar os outros pode até ser útil no sentido de dar status social, mas muitas vezes o custo não compensa o benefício. Todos os comportamentos humanos são essencialmente egoístas dentro dessa visão. Porque se fossem verdadeiramente altruístas, nossos genes não seriam passados adiante.

Quer dizer, em nível pessoal, levando essa teoria às suas últimas conseqüências, somente com alternativas Ad Hoc e religiosidade é que podemos ter um comportamento altruísta. Poderíamos dizer que e útil para a sobrevivência do indivíduo que ele coopere com o grupo, mas ainda assim permaneceremos num conflito constante, embora ocultado. A essência, nessa visão, do comportamento do indivíduo no meio social é a do individualismo, bem como pregado no American Way of Life: cada um que cuide do seu jardim. Porque, afinal, a nossa origem, o que nos deu a forma que temos, foi essencialmente a competição.

Apesar das costuras e dos emendos, a lógica evolucionista, quando transposta para termos éticos, traz apenas o egoísmo. E somente alguns niilistas conseguem admitir tal coisa: que tudo, no fim das contas, é motivado pelo egoísmo.

Nosso convívio diário, nossa organização social, nosso mercado de trabalho, nossos meios de produção, nossas classes sociais. Tudo baseado na competição.

Não estou aqui para propor um sistema que elimine a competição, nem tampouco para provar que ela não é a melhor forma de pensarmos e organizarmos a sociedade. Apenas constatando a visão evolucionista é o braço direito do capitalismo, embora os biólogos tenham a tendência de ignorar tais estudos. Nós temos alimento para matar a fome do mundo, mas não o interesse dos indivíduos que detém tais alimentos de fazer isso. Afinal, é cada um por si. E temos uma Deusa[3] apoiando tais ações.

A concepção de engenharia genética como alternativa

Agora, pensando segundo a linha de raciocínio do outro post, no qual foi postulado que fomos construídos artificialmente, a coisa muda profundamente.

Se fomos construídos como uma espécie a se conservar com uma estrutura mais ou menos estática, devemos pressupor que o(s) autor(es) nos desenharam para sobrevivermos. Não desenhou um indivíduo, uma manifestação individual do “código básico” da espécie, mas uma espécie inteira. Se todos os seres humanos, egoístas, buscassem apenas o próprio benefício, a tendência seria a extinção. Assim, a forma mais lógica de programar uma espécie é colocando como base o altruísmo e não o egoísmo. Somente na lógica evolucionista, a partir da qual tivemos origem em mecanismos complexos de competição, é que esta faz algum sentido. Se pensarmos um projeto de espécie inteligente e fisicamente frágil que deve ser capaz de sobreviver, o impulso básico deve ser o de cooperação acima de qualquer outro. Se a base da nossa motivação é a cooperação e não a competição, então podemos explicar alguns fenômenos observáveis na nossa sociedade.

Em bancos, ficou comprovado, há uma taxa muito maior de suicídios e licenças por depressão do que em outros ambiente de trabalho. Os funcionários são submetidos uma carga excessiva de stress, que é compensada por palestrantes, livros de auto-ajuda ou terapias. Os problemas, convenientemente, são projetados para a responsabilidade do indivíduo. Isso, no entanto, não elimina seu problema, mas o suprime através de sucessivas catarses até que ele possa ser substituído.

No entanto, partindo da premissa de que nós não somos naturalmente competitivos e egoístas, mas que tal comportamento nos é internalizado pelo processo de socialização, a coisa fica bem interessante. Partindo dessa premissa, estaríamos basicamente dizendo que o ser humano tem uma propensão “natural” para cooperar, muito mais do que para competir.

Um dos maiores males da sociedade atual, portanto, é a solidão. Pais pensando que podem comprar a felicidade dos filhos, e, quem sabe assim, comprar a própria. Pessoas convivendo entre si por mera conveniência e sozinhas no meio da multidão. Olhando para um lado e para o outro e não vendo nada além de sua própria pequenez e solidão. Uma contradição com a lógica original, que nos preparou parar a cooperação e não para o isolamento. Essa lógica que, no fim das contas, nos lança atrás de amor, como Erich Fromm postula. O que mais queremos, aquilo de que mais sentimos falta, é amor. Um princípio excessivamente altruísta, dificilmente explicável pela lógica de que tudo se baseia no egoísmo.

Seríamos, então, uma espécie muito mais adaptável a um ambiente de cooperação, onde estaríamos conservados. É somente através da estimulação que nossa mentalidade internaliza a competição, sem, contudo, deixar abismos nos indivíduos. A idéia de que fomos programados e não tivemos origem da competição nos faz rever esse hábito social. Afinal, se tivemos a mesma origem e se o propósito de nossa existência física não é apenas passar nossos genes adiante, mas manter toda a espécie coesa e viva, a coisa muda de figura. Nessa lógica, é lícito que indivíduos dediquem toda a sua vida a ajudar os próximos, sem buscar tão somente o prazer para si mesmos e a sobrevivência de sua “prole”.

Nossa missão natural, então, deixa de ser sobreviver e deixar descendentes férteis, mas amar e ajudar a conservar toda a espécie. E mais além: conservar toda a biosfera para que isso seja possível.

Essa visão se adapta muito melhor a qualquer concepção metafísica que pregue o amor do que a evolucionismo, e, se levada às ultimas conseqüência, nos levara a uma estruturação social onde a afetividade, o companheirismo, o amor, se tornarão prioridade. Onde todos buscarão se ajudar num ambiente de trabalho ao invés de se ignorarem ou simplesmente prejudicarem o outro. Com essa concepção de natureza, nossa vida seria mais agradável e nossa sociedade incrivelmente mais produtiva. Somos seres afetivos, capazes de amar. Está na base do projeto...


[1] Pra dar o texto a aparência de ser algo sério, claro. (http://designinteligente.blogspot.com/2010/01/darwinismo-e-marxismo.html)
[2] Parece estranho, no entanto, que elas admitam normalmente o fato de que muitas formigas nunca passem seus códigos genéticos adiante, servindo apenas para o funcionamento da colônia, sem que tal comportamento tenha feito com que tais formigas entrassem em extinção. Se algum evolucionista quiser, me explicar tal fenômeno dentro da teoria evolutiva deve ser bastante interessante.
[3] Gaia, a mãe natureza.

7 comentários:

Fillipe Jardim disse...

Sugiro você dar uma olhada em trabalhos de Bioestratigrafia.

o aparecimento de microfósseis (um registro numeroso deles, diga-se de passagem) em épocas distintas, com determinadas espécies suplantando outras na competição de recursos só explicada à luz do evolucionismo.

Isso é um abundante registro fóssil, ou seja, há muito material para estudo e as interpretações são feitas a partir dessas evidências.

A "teoria" do Designer é bamba numa brincadeira lógica bem simples: se, à luz do design inteligente tudo só pode surgir a partir de um planejamento, e algo nos "planejou", quem planejou o nosso projetista? E quem projetou o projetista do nosso projetista? E quem...

Fillipe Jardim disse...

Lembrando que estamos falando de estratos nas rochas sedimentares, com níveis definindo bem as determinadas épocas de formação dessas rochas.

Silas disse...

Esse comentário seria mais apropriado ao post anterior, mas ok. Você estar aqui brincando ja é bom o bastante.

Você disse: “o aparecimento de microfósseis (um registro numeroso deles, diga-se de passagem) em épocas distintas, com determinadas espécies suplantando outras na competição de recursos só explicada à luz do evolucionismo.

Isso é um abundante registro fóssil, ou seja, há muito material para estudo e as interpretações são feitas a partir dessas evidências.”

De maneira alguma o evolucionismo é o único princípio explicativo capaz de circunscrever isso.
Se você prestar atenção no texto anterior, verá que postulei a existência de inúmeros programadores em diferentes épocas. Não há como presumir que houve apenas um. Logo, diferentes programadores vieram ao planeta em diversas ocasiões, criando diversas espécies. Muitas entraram em extinção, mas foi construída uma biosfera. Quer dizer, isso justifica qualquer tipo de sucessividade entre espécies e fósseis.

Postula-se que realmente um deu origem ao outro no decorrer da história do planeta. Apenas que isso não aconteceu através do mecanismo evolutivo, mas de intervenção inteligente.

Claro que há competição, mas apenas em nível micro-evolutivo, o que é admitido no meu texto. Apenas não creio que foi esse mecanismo competitivo que deu origem à origem das espécies.

Você disse: “A "teoria" do Designer é bamba numa brincadeira lógica bem simples: se, à luz do design inteligente tudo só pode surgir a partir de um planejamento, e algo nos "planejou", quem planejou o nosso projetista? E quem projetou o projetista do nosso projetista? E quem...”

Novamente você parece não ter prestado atenção no que eu escrevi. Primeiro, não há o Designer. Há um indeterminado número de grupos de engenheiros genéticos. Você faz um questionamento a princípios religiosos e teológicos, ignorando o fato de que nesse mesmo texto eu declarei que Deus está morto. Eu especulo sobre a possibilidade de termos sido desenhados porque sabemos hoje que isso é possível e porque percebi que com esse princípio os fenômenos também podem ser explicados, mas destruindo o orgulho (de sermos um milagre da natureza) e o egoísmo (Cada um por si e Deus no túmulo). Isso sem falar das outras implicações, que citei no fim do primeiro texto e que você parece ter ignorado.

Silas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fillipe Jardim disse...

Bem, é só expandir a questão para os "designers".

Quem os criou, o que os criou, qual o propósito deles?

Não somos "milagres" da natureza. Já que você mesmo especulou, me darei a liberdade de especular: a vida é apenas um dos inúmeros desdobramentos da matéria do universo. Não é um processo caótico, é moldado pelo meio e leva muito tempo, como levou aqui na Terra.

Silas disse...

Sua questão é metafísica e irrelevante. Uma coisa é encontrarmos, aqui, evidências de que podemos ter sido o resultado de um projeto de engenheiros alienígenas. Outra é especular sobre tais alienígenas.

Se eu não posso dizer nada sobre eles a não ser que programaram as espécies de maneira lógicas e que, portanto, são inteligentes, de que me serviria especular sobre a origem deles?

Seria uma viagem muito absurda eu querer especular sobre algo que eu nunca observei.

O termo milagre eu o usei não com cunho sobrenatural, mas estatístico. Presumir que tivemos origem espontânea na teoria da abiogênese, depois um longo e complicado processo que (por acaso é um reflexo da sociedade inglesa onde Darwin vivia), aos trancos e barrancos deu origem a toda imensa variedade de espécies. As chances de isso ter ocorrido são absurdamente baixas, mas como há uma espécie de necessidade de nos livrarmos do peso de termos um "criador", ela é mais aceitável do que qualquer outra.

Afinal, basta você propor uma origem inteligente para ser acusado de religioso e metafísico. O problema é que isso não é uma questão teológica, tampouco eu acredito em Deus ou em qualquer religião.

Você disse: “a vida é apenas um dos inúmeros desdobramentos da matéria do universo. Não é um processo caótico, é moldado pelo meio e leva muito tempo, como levou aqui na Terra.”

Respondo: A nossa, você quer dizer. Mas quando nós chegarmos ao ponto de programar espécies, e por acaso programarmos uma espécie consciente num ambiente isolado, provavelmente ela chegará às mesmas conclusões. Se há evidências de que fomos programados geneticamente, porque é tão difícil admitir essa possibilidade?

As vezes me parece que essa resistência é mais emocional do que racional.

Maria Ligia Ueno disse...

Em suma: concordo.
Embora também ache que o ser humano é contraditório o suficiente para que também tenha sido programado para ser egoísta, e que as duas coisas em si lhe são naturais. Entretanto, são desenvolvidas em cada pessoa de modo que uma ou outra se destaca.