As implicações da tecnologia meta-biológica no aprendizado



Joana estava no colégio, onde mostravam as informações passadas para os mais jovens. Sua primeira impressão foi de que tal coisa se afigurava cruel, inumana, e eis as suas objeções.

- Como vocês podem esperar que essas crianças gravem todo esse conhecimento de uma vez só? não percebem como esse esforço torna a vida delas miserável, na medida em que gastam toda a sua energia memorizando coisas?
- Seria inumano no seu planeta, onde as crianças lamentavelmente dependem apenas do próprio cérebro ou de tecnologia arcaica pra armazenar informação. Aliás, fazem coisas parecidas no seu planeta, o que cria seres humanos complexados, descontrolados, infelizes.
- Como as crianças memorizam as coisas senão com o cérebro?
- Através dos dispositivos meta-biológicos que elas recebem aos dois anos de idade.
- Mas o que é um dispositivos meta-biológico?
- O termo meta-biológico é uma adaptação à sua linguagem. Imaginávamos que sua significação estaria implícita. Desculpe o engano. Artefatos de tecnologia meta-biológica são dispositivos feitos com estrutura de DNA específica desenhada pra se integrarem ao sistema nervoso central. Nesse sentido, poderíamos dizer que é um computador biológicos. Apenas a analogia com sua tecnologia eletrônica não vai longe, pois esse sistema tecnológico é plástico. Ele se adapta às mudanças na estrutura do pensamento do indivíduo, sempre refazendo o processamento das informações armazenadas, e mantém uma leitura das sinapses cerebrais. Assim, quando o indivíduo pensa em se lembrar de determinada informação, ela surge em sua consciência da interface dos dispositivos meta-cerebrais. Esses dispositivos são capazes de realizar traduções de todas as linguagens da terra e da nossa civilização, além de realizar cálculos matemáticos, resolver algoritmos complexos e diversos problemas lógicos mais mecânicos. Além disso, ele possui uma capacidade de armazenamento virtualmente infinita e se integra com o sistema de coordenação motora, além de complementar o sistema nervoso periférico.
- O que? Vocês colocam chips nas suas crianças?
- Chip é um artefato eletrônico. Nós não usamos mais tecnologia eletrônica há alguns séculos.
- Não estou entendendo.

O homenzinho projetou, aparentemente com as mãos, um holograma que ia demonstrando passo a passo a interação entre os dispositivos e o sistema nervoso. Segundo ficou demonstrado, a estrutura do artefato é tão perfeitamente imbricada com o organismo que os próprios neurônios da caixa craniana realizam sinapses com os neurônios artificiais e buscam as informações, sem necessidade de uma interface que interage com os sentidos. Assim, a velocidade do fluxo de informação se torna muito mais rápida e o excesso de informação não sobrecarrega o cérebro.

- Mas... Então como são as provas?
- Não usamos provas como as empregadas por vocês. Elas são um teste de memória, raciocínio mecânico e até resistência física. São uma forma cruel de seleção entre os aptos e os inaptos. Nossas avaliações são se outra natureza. Nossas crianças desenvolvem hipóteses acerca das coisas que observam, criam princípios explicativos, falam sobre suas emoções acerca dessas coisas. Sempre com orientação dos especialistas, que indicam caminhos, entendem a linha de raciocínio da criança e fazem perguntas cruciais. O que buscamos exercitar no sistema de ensino, numa palavra, é a criatividade em suas mais diversas formas.
- Mas como vocês podem dar tanta atenção aos alunos?
- Conseguimos através da tecnologia meta-biológica no organismo dos professores, que permite maior armazenamento de informações sobre os alunos. Além disso, temos uma média de dois professores pra cada aluno, por mais que se formem turmas. Os alunos escolhem cerca de cinco orientadores para seus projetos.
- Isso me deixa angustiada.
- Porque?
- Porque parece que a solução pra educação é tecnologia que não temos a uma quantidade de professores capacitados que não temos.
- Viemos persuadir os habitantes do planeta que nos aceitem como seus visitantes. No entanto, sabemos que o estranho assusta e que a nossa tecnologia causará horror, veneração e diversos outros resultados que não desejamos. Por isso optamos por trazer grupos de nativos para a nossa nave para entenderem melhor como é o nosso modo de vida. Assim, quando chegarmos uma grande parcela da população não nos estranhará, mas antes lembrará daquele sonho que tiveram a nosso respeito.
- como assim sonho?
- Quando você acordar na sua casa hoje, pensará que isso não passou de um sonho.
- Entendi... Posso ver suas crianças?
- Pode claro. Entre por essa porta e vá até o fim do corredor.

Joana foi e a mulher que a acompanhava a seguiu até a porta, onde ela pode entrar e ver três crianças escrevendo, cada uma num ponto diferente da sala. Ela sentou ao lado de uma delas que estava escrevendo com um olhar carinhoso. A criança parecia pequena, de uns seis anos de idade, mas escrevia rapidamente. Quando percebeu a presença de Joana colocou o que usava para escrever de lado. Era como papel, só que virtual.

- Oi. Qual é o seu nome?
- Aquele que traz a mudança.
- Que bom! Tenho certeza de que seus pais gostam muito de você.
- Gostam nada. Tenho pais novos.
- Claro que gostam! Não fale assim. Seus pais escolheram ter você.
- Que base você tem pra falar, ô gigante? Meus pais não são sentimentais. Eles só escolheram meu nascimento para comprovar que a tese a respeito dos filhos que é aceito por muito está errado. Meu nome é assim porque eu, segundo eles, vim para provar que ter filhos é um erro. Eles que se fodam.
- Olha, não precisa ficar assim tão bravo. Sabe, as pessoas cometem erros, mas elas mudam. Perdoe seus pais. Um dia eu sei que eles entenderão o erro que cometeram. Você vai ver.
- Nunca me ofendi com eles. Na verdade eles não são nada pra mim além de pessoas doaram um pouco de energia para meu nascimento. Eles que se fodam, não são família pra mim.

Joana ficou com um olhar triste. Passou a mão nos cabelos do menino e começou a falar

- Quantos anos você tem?- Tenho doze anos. O que foi, esperava outra coisa?
- É que no meu planeta as coisas são diferentes. O que você está escrevendo aí?
- É um sonho que eu tive. Eu vou ser artista, sabe? Quero ser um vagabundo inútil.
- Você quer ser inútil?
- Só estou usando os termos dos meus pais. Pensam que artistas ficam inventando qualquer besteira sem qualquer fundamento e que artistas são inúteis. Mas eu sou artista, e não me importo com o que eles pensam, eu não sou eles, nem quero ser, eles que se fodam.
- Olha, apesar de tudo são seus pais. Você devia respeitá—los.
- Por quê?
- Porque eles te criaram.
- Eu não sou nada pra eles. São uns robôs! Que tal a gente mudar de assunto?
- Você tem alguma ideia?
- Já que você se interessa tanto pela minha vida pessoal eu quero saber sobre a sua.
- Tudo bem.
- Soube que seus hábitos de reprodução são parecidos com os nossos. Você se masturba muito?
- O quê?
- O tradutor está funcionando direito. Ouvi dizer que o seu planeta é cheio de niilistas e que vocês vivem transando e se masturbando o tempo todo. Deve ser o paraíso. Olha, nós não podemos ter filhos por causa do código genético, mas podemos transar, sabia?
- Isso é falta de educação! Não fale assim comigo ou com ninguém. É uma coisa íntima e muito pessoal.
- Por quê?
- Porque sim.
- Há! Você é uma acorrentada! Você tem fetiche com isso?

Joana levantou e saiu de perto do garoto, que continuou escrevendo tranquilamente. Na sala externa foi falar com a mestra em educação sobre o comportamento do garoto.

- Fui desrespeitada por um de seus alunos. Perguntou se eu me masturbo!
- Você não se masturba?
- Isso é problema meu!
- Masturbação é um problema?
- Olha. Eu não me masturbo, tá bem?
- Então faz sexo com frequência?
- Qual é o problema com vocês? Não respeitam a intimidade dos outros, não? Não sabem educar as crianças e por isso ficam mal criadas desse jeito! Aquele menino odeia os pais!
- São sentimentos dele, e não são um perigo para a sociedade. Não podemos reprimi—los.
- São sentimentos negativos e devem ser evitados.
- Você é uma acorrentada.
- O que?
- Você está presa á moral. É uma acorrentada! Cheia de inibições criadas pelos outros no próprio comportamento. Mas isso não é você!
- Eu sei muito bem quem eu sou!
- Não sabe não. Grande parte do que você é não passa de uma mentira. Você fecha seus olhos e glorifica a ingenuidade, mas não é tão ingênua quanto parece.
- Eu não sou ingênua. Só acho que não é certo ensinar crianças a serem revoltadas.
- E então o que é certo ensinar?
- A serem bem comportadas.
- Um erro! Uma criança bem comportada é um robô. Ela se comporta exatamente como os outros acham certo, e faz tudo o que disseram que é certo, mas é acorrentada e nunca desenvolve a si mesma. O problema não estava naquele que traz a mudança, está em você, que tem inibições primitivas de impulsos naturais. Aliás, não são só seus impulsos que você inibe. Veja só, há fatos claros diante dos seus olhos na sua vida que demonstram o meu ponto.

Foi exibido um vídeo para Joana, no qual ela estava transando aos quatorze anos, e depois outro dela grávida. Ela ficou chocada por alguns segundos e começou a chorar, mas logo se recompôs.

- Porra, vocês ensinam suas crianças a transar. Isso é pedofilia.
- As crianças só podem ter relações sexuais dentro de realidade virtual nessa idade. Em uns 3 anos, quando ele demonstrar que possui maturidade, poderá ter relações com robôs, e mais tarde, quando terminar sua primeira tese, poderá ter relações com pessoas de todas as idades. Não temos interesse em fingir que as crianças não possuem sexualidade em época de puberdade. Aquele que trás a mudança está nessa fase, e na realidade virtual, somente programas específicos interagem com ele. Não há abuso por parte de adultos. Se não fosse nessa realidade, ele se masturbaria evocando com a própria mente imagens análogas. É até mesmo estúpido dizer que o estamos corrompendo por deixarmos seus impulsos fluírem com relativa liberdade.

Joana encheu o pulmão de ar, mas não falou nada de imediato.

- Vejo que voe se chateou. Não é minha intenção te aborrecer, mas na interação com nossa civilização é comum que o choque entre culturas cause estranhamento. Depois de um tempo, creio, isso se tornará mais comum.
- Eu melhoro. Só que tem mais uma coisa que me deixa preocupada.
- O Que?
- E se isso for realmente um sonho? E se não houver visitantes? O que faremos para resolver nossos problemas educacionais?
- Pessoalmente, tenho sugestões.
- Me diga
- Em primeiro lugar, façam o maior esforço possível pra integrar a tecnologia no ensino. Depois, deixem de determinar coletivamente o que deve e o que não deve ser aprendido. Que a partir da puberdade, os indivíduos já possam escolher suas preferências, mas que tudo seja como se fosse uma brincadeira.
- Mas a vida não é brincadeira!
- A criança aprenderá sobre os diferentes grupos sociais de sua sociedade globalizada sem ser coagida por alguns deles, como o religioso, esportivo ou científico. Nesse sentido, poderá ter maior autonomia em escolher o que quer ser, e terá menos pressão para aprender coisas que lhe serão irrelevantes no futuro. Devem, também, dar condição de vida digna aos professores, e aumentar, sempre que possível, a quantidade de professores trabalhando. Só isso já resolverá uma infinidade de problemas que vocês possuem.
- Vou pensar nisso. Parece bonito, mas praticamente impossível de aplicar.
- Não será sempre assim. Nossa esperança é que o nosso contato com vocês vá modificando progressivamente a sua forma de ver o mundo. Assim, pretendemos um preparo de dentro pra fora antes de termos contato com os nativos.

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