Uma breve correspondência intergaláctica

De: Roberto
Para: O Místico da Montanha

Caro amigo e conselheiro. Venho por meio dessa correspondência solicitar o contato imediato entre as nossas civilizações, no intuito de, nesse contato, expandir o conhecimento humano à nossa disposição e, conseqüentemente, propiciar maior avanço tecnológico. Espero que você entenda que o que busco não é tecnologias e paradigmas prontos para que possamos copiar, mas uma forma de influência que possa mudar o curso de ação das pessoas, que faça com que elas tentem criticar a epistemologia da vida. Meu intuito é causa uma massiva onda de revisão paradigmática, na qual a humanidade poderia evoluir. Temo que minha civilização possa se autodestruir. Ou quem sabe se afundar em mitos milenares, entendidos como destituídos de história e de contexto social.

De: O Místico da Montanha
Para: Roberto

Caro habitante dos vales terráqueos. Entendo sua angústia em relação aos paradigmas do seu planeta, que você considera primitivos, mas a verdade é que essa sensação é endógena. Não estou dizendo que sua civilização não tenha lições para a aprender com a minha, mas que essa sensação não decorre da imperfeição da sociedade, mas da inconformidade dela com sua identidade. Para ser mais claro, uso a mim mesmo como exemplo. Meu nome de nascimento é pobremente traduzido como criador de tecnologia. No entanto, contrariamente às expectativas da sociedade, eu tive uma espécie de vivência interna, uma espécie de contato com algo maior, que mudou o curso das minhas ações mais ou menos na época da aquisição dos robôs moleculares individuais, aos 20 anos. Eu me tornei um místico para uns, um conselheiro espiritual para outros, um charlatão para muitos. Com freqüência fico pasmo com a falta de sabedoria, a falta de espiritualidade de alguns de meus companheiros. E também me causa muita aflição que eles tenham tamanha influência na sociedade.
Essa aflição, no entanto, decorre apenas da diferença. Se eu modificasse esse aspecto da sociedade, haveria outro que tomaria seu lugar como fonte de insatisfação. O que você manifesta pra mim é um desejo de submeter o mundo aos seus ideais, plasmados na minha sociedade. Estou falando isso porque te conheço, e porque seu sofrimento pode ser resolvido de dentro pra fora.
Com relação ao contato, estou de acordo com os estudos cognitivos mais recentes acerca da mentalidade dos habitantes do planeta. É comprovado que a esmagadora maioria da população do planeta não possui capacidade cognitiva para entender sequer 10% da complexidade das nossas tecnologias. Além de que ainda impera na população um sentimento de apego à tradições, decorrente do seu sistema de comunicação insuficiente. Na verdade, quando vocês estabelecerem sua teia de comunicação global e facilitarem a interface de acesso, passarão ainda boas décadas até que se torne suficientemente frágil o apego à tradições. Com esse apego, nossa cultura parecerá repugnante, pecaminosa, sagrada. Jamais chegará perto de se parecer, aos olhos dos habitantes, o que é.
Se você quer exemplos disso, tome a chegada de Matias no Planeta. Primeiro foi interpretado como anjo dos céus, depois como suspeito de criminoso. Imagine como seria a reação da sua população ao saber que nossas relações são com freqüência polígamas, que as pessoas mudam de aparência completamente em segundos, ou até mesmo de sexo, e que nossa identidade não possui nenhuma relação com nossa aparência estética (afinal, nós a construímos e reconstruímos freqüentemente em cada mínimo detalhe desde os 20 anos de idade)¿
Não entenderiam como o fazemos, pensariam que somos corruptos, demoníacos. Tentariam ataques fúteis, que não nos causariam nenhum dano, mas que acabaria por reforçar a noção de que somos criaturas perigosas, por não sermos passíveis de assassínio por meio de suas armas primitivas.
Seu conceito de evolução é vago, e ainda mais a própria noção de evolução social é um erro etimológico: o que se observa na história não é o desenvolvimento de uma única tendência, mas o surgimento e o desaparecimento de diferentes tendências. O que você interpreta como nova etapa da evolução humana não passa de mais uma tendência, a qual será “superada” na próxima geração por outra que não a complementa de maneira alguma, mas que será adequada ao novo contexto.
Acerca dos mitos, é uma questão de assimilação: algumas pessoas não desenvolveram sua capacidade cognitiva, mas ainda assim precisam saber. É um impulso básico, a vontade de saber. Para isso, estabelecem ou recebem critérios proporcionais ao seu potencial e dão seu próprio sentido à vida. Recriminar essas pessoas é o mesmo que recriminar um cachorro por insistir em latir, mesmo quando instruído a falar.
Espero não ter te desanimado.

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