Morte em 55



Não havia mais saída. Ela me achou, revirou minha casa e levou o caderno. Fim da linha pra mim. Então eu decidi testar o limite daquele desejo de vingança. Vendi tudo, troquei meu dinheiro por dólares e saí do país. Ela estava no aeroporto, mas não consegui encontrar seus olhos senão bem antes de embarcar. Ficaram claros com o sol se pondo de uma forma completamente nova pra mim, mas o olhar era o mesmo. Inconfundível. Ainda me pergunto se fui eu que me deixei capturar ou se ela que me deixava escapar.
Foi uma aventura e tanto. Passeamos pelo país com carros alugados por lugares estranhos. Da minha parte, nunca quis saber de nome algum. Pessoas, lugares, nada desviava meu foco: Cada vez que eu a via me perseguindo, minha stalker pessoal, meu salgue fervia. Deixei bilhetes, dinheiro e cartões postais pelo caminho. Era como a paixão. Cada mínimo sinal da outra pessoa nos causa calafrios. De certa forma foi uma grande paixão. Me afetou até as entranhas!
Com o tempo um estranho medo foi me dominando e consumindo. Medo de encontra-la face à face pra conversar. De ouvir sua voz no lugar de suas mensagens escritas de ódio. Só quem viveu um amor secreto poderia entender o que eu senti.
Antes do nosso último encontro, ela quase me capturou. Teria conseguido, mas acho que estava tão nervosa quanto eu. Aquela noite se inscreveu na minha alma...
Aluguei um quarto num motel que ficava em um posto de gasolina e ela estava ali dentro me esperando. Uma das melhores surpresas da minha vida. Tirei meu casaco até a metade sem perceber a presença dela. Mal entendia o que estava acontecendo quando ela usou o casaco pra prender meus braços e me derrubou com um desajeitado chute no peito. Eu sabia que era era. Meu coração acelerou e minha perna ficou bamba enquanto eu me esforçava pra me esquivar dos golpes de faca que ela tentava desferir.
Num instante ela estava em cima de mim com faca apontada pro meu pescoço. Foi uma coisa muito impulsiva e estranha, já que a minha barriga estava vulnerável, mas meu pescoço não. Consegui segurar os dois braços dela. Era uma moça muito leve se comparada ao peso que eu tinha. Ela chorou e eu senti pelo menos duas gotas de lágrima caíram no casaco. Estranho eu ter percebido justo aquilo, mas pareceu tão alto o som do impacto daquela gota. Virei pra cima dela e a faca caiu debaixo da cama. Foi tudo muito rápido. Ela acertou meu saco com uma joelhada e correu.
Assisti enquanto ela sumia no meio da noite. Eu me lembro do cabelo dela, que ficava sempre preso, mas se soltou no conflito e balançava. Um farol de carro se refletiu naqueles fios negros enquanto eles se perdiam na mata.
Ninguém se feriu, mas fiquei a noite inteira sentado no chão fumando cigarros. As minhas pernas tremiam com o frio da minha barriga e eu numa havia sentido meu coração bater tão forte como naquela noite. Minha vida até ali tinha sido calma, controlada. Mesmo matando, com aquela intimidade visceral, eu não me sentia assim. Era como se todo aquele ódio que ela sentia me envolvesse.
Meu mundo estava em chamas e eu queria mais.
Despois daquela noite ela desapareceu por mais de um mês. Na verdade, eu já tinha parado de contar os dias, mas pareceu uma eternidade. Em cada esquina, minhas mãos esfriavam, minhas pupilas dilatavam. Ela podia estar ali! Eu me senti intensamente humano nos primeiros dias.
Mas ela desapareceu. E a humanidade que ela deixou foi se esvaindo. Se transformou não em fome por destruição, como outrora, mas em apatia. Comi pouco, dormi muito e não tive sonhos. Acabei parando em uma cidadezinha no estado do Colorado e ficando quase todo o resto do mês ali. Lembrei de presas que eram abandonadas pelos entes queridos, que fugiam aterrorizados. Seria isso que sentiam? Quando seus amores, suas famílias os abandonava comigo sem um pingo de luta?
Cheguei num ponto em que gostaria de ser morto por qualquer pessoa. Apenas pela leve emoção e o alívio daquela sensação.
Há mais de vinte anos eu não tinha amigos ou família, mas somente naquele momento eu me senti sozinho. Mas ela veio. Justamente quando eu menos esperava. Eu estava entregue ao vazio e dormi olhando pra um caderno de desenhos que achei naquele quarto. Alguma criança o perdeu ali. Quando acordei, lá estava ela!
Já não me olhava com tanto ódio. Parecia sentir nojo. Talvez pena, dúvida, mas o ódio desapareceu. Era noite e os olhos dela estavam negros novamente. Meu corpo estava amarrado com cordas numa mesa e minha blusa estava desabotoada. Bem ali naquela mesa eu vivi mais do que em toda a minha vida.

- Quais são suas últimas palavras? – perguntou ela
- Achou sua faca? Deixei no porta luvas do meu carro. – respondi.

Ela respirou fundo, me olhou nos olhos e saiu. Foi buscar a arma. Lembro de ter guardado a faca porque ela estava toda arranhada com letras e números. Podia ter algum significado especial pra ela.

- Essa faca não é minha – disse ela ao passar pela porta – é sua.
- Eu não tenho armas. Apenas uso o que o ambiente me fornece.
- Você cortou a garganta dela com essa faca. Desgraçado... Fala disso como se fosse uma coisa qualquer!

Ela encostou a ponta da faca no meu peito, segurando o choro.

- Quais são suas últimas palavras!?
- Tenho um pedido a fazer.
- Não vou te soltar – ela disse enquanto perfurava levemente minha pele.
- Quero que você olhe nos meus olhos e esteja comigo.
- O que?
- Você olha pra lâmpada acima de mim, pra porta, pros carros que passam na estrada, mas não pra mim. Você veio pra me matar, não foi.

Ela olhou nos meus olhos e chorou.

- Porque você fez isso? O que minha irmã te fez?
- Ela defendeu minha presa
- O Luis? Seu filho da puta!

O momento foi delicioso Ela me dava socos desajeitados e gritava com uma intensidade que eu nunca fui capaz de vislumbrar senão naquele momento. Os gritos dela cerravam meus dentes e os socos cerravam meus punhos. Eu era capaz de ter emoções sem matar, afinal. Emoções tão fortes que eram capazes de me privar da capacidade de raciocinar. Eu podia ser humano.
Ela subiu em cima de mim e começou a bater minha cabeça contra a mesa. Minha musculatura estava relaxada, então acabei perdendo a consciência.
Quando acordei, estava solto e ela estava me olhando sentada numa cadeira de balanço.

- Eu não vou me igualar a você. Eu não sou assassina... – disse ela
- Sabia que Beth implorou pela vida do primo? Ela até se ofereceu pra morrer no lugar dele.
- Porque você matou os dois?
- Ele era a presa. Ela devia ter ido embora.
- Porque ele?
- Ele bateu numa criança. É uma coisa que me atrai nas presas e uma das razões pelas quais eu mato tanta gente. Eu gosto de coisas simples e comuns, que se encontra em cada esquina. Coisas raras são insípidas pra mim.
- Você podia ter deixado ela viver...
- Não. Eu gosto de matar os defensores. A coisa toda fica mais emocionante e espontânea.

Ela perdeu o controle e colocou a faca no meu pescoço. Chorava como eu nunca consegui com os olhos fechados.

- Fica aqui. No presente. Olha nos meus olhos... – eu disse em voz baixa

Mesmo estando solto, eu não me movi: Estava exatamente onde e como queria estar. Ela abriu os olhos, que voltaram a brilhar com ódio. Lindos.

- Essa faca está sem fio. Você vai ter que me matar com a ponta.
- Porque você quer morrer?
- Não quero propriamente morrer. Quero só sentir um pouco da sua humanidade. Você está transbordando!

Nossos olhos ficaram presos uns nos outros por eternos segundos até ela se curvar e encostar os lábios no meu ouvido. Foi quando ela enfiou a faca na minha barriga. Devagar enquanto elevava o tom do ruído que soltava no meu ouvido até ele se transformar num grito. A cada facada, um novo grito surgia. Ou melhor, a cada grito, uma nova facada surgia, porque quem ditava o ritmo de tudo era a respiração dela. Nunca me senti tão vivo em toda aquela vida.

Sobre cães e tigres



Para quem não tem tempo a perder, esse post não é sobre comportamento ou anatomia dos animais acima citados. Nem tampouco diz respeito à lutas ambientais ou por seus direitos. Trata-se, no máximo, de uma poetização que os colocará sobre outro foco e quem sabe, fará você pausar para olhar com calma. Mas isso aqui não passa de um cara qualquer procurando entender e explicar a si mesmo usando analogias entre sua personalidade e o comportamento, atribuído por ele, desses animais. Se você seguir a diante, faça sabendo o que te espera.
O tigre é um caçador gigante, silencioso e solitário. Sem pressa, como outros mamíferos, ele espreita. Não que ele verdadeiramente precise do elemento surpresa. Não há animais que consigam enfrenta-lo em seu ambiente. Mas ele vai devagar porque não tem pressa, porque aprecia precisão. Quando ele passa, com suas patas macias, é tão silencioso que chega a ser solitário. Não lhe dirigem olhares, o confundem com o ambiente. Há aqui certo grau de introspecção em seus olhos, como se ele realmente pouco estivesse se importando com o mundo que lhe circunda a não ser que este o convide ou que suas necessidades o impulsionem. Garras enormes, dentes afiados e pelagem macia. Depende apenas do outro o que será o foco. Quem desperta garras, é rasgado, quem desperta presas é despedaçado. Mas quem desperta a pelagem é aconchegado e conta com garras e dentes para sua proteção integral. Um tigre enfrenta um urso e o mata guiado por esse princípio. Nos sentidos acima expostos, sou como um tigre. Meu maior triunfo é passar despercebido, seja social ou fisicamente. Eu gosto de andar no escuro e vejo bem nesses ambientes, porque tenho calma pra me adaptar ao novo nível de luminosidade. Se há algo de que me orgulho é do meu progresso com ser carinhoso. Não foi sozinho, é claro, nunca poderia ter sido. E, ainda assim, isso é pra pouquíssimos, mas está lá. Tigres não são simplesmente predadores ferozes. Eles também podem ser pacíficos e gentis.
Apesar de eu me ver muito em representações que faço sobre tigres, o animal ao qual atribuo maior semelhança a mim é o cão. Nada que contradiga muito absurdamente o aspecto do tigre. Trata-se apenas de outro ângulo e outras características.
Em primeiro lugar, um cão não vive nesse universo triste capitalista de ter apenas um objetivo na vida. Não quer só passear, ou só comer a sua comida, ou só aquela bolinha que você sempre joga. O cachorro pode estar demonstrando morrer de vontade de comer seu hambúrguer, mas se dará por satisfeito comendo uma salsicha. Essa neurose de querer sempre aquela mesma coisa e viver sempre frustrado se a vida lhe oferecer outra não existe em cães. Ele fica feliz com um carinho, e fica feliz com um lanche, fica feliz passeando, correndo atrás da bolinha, do disco ou até mesmo do gato. Esse é o segredo da felicidade canina. Se resume assim: “não tenho tudo o que amo, mas amo tudo o que tenho”. Um cão doente e faminto na rua apreciará seu carinho e, se dispuser de energia, poderá até brincar com você. Isso, é claro, se ele não tiver sido espancado ou sofrido tentativas repetidas de homicídio. Ainda assim, constatando que não será maltratado, ele balança o rabo pra você. Não é preciso muito para um cão ser feliz e é inclusive triste que alguns consigam não ser. Estou convencido de que todos os cães seriam felizes como eu, se fossem independentes. Porque a filosofia de vida eles já possuem: apreciar o simples, não se fixar em nada.
Não quero dizer com isso que cães não sejam leais. Muito pelo contrário. Apenas que, amando ou não, tendo um lar ou não, coisas simples sempre serão motivo de alegria, simplesmente porque o cão não tem essa carência fundamental, essa necessidade de correr atrás de algo inexistente que causa constante frustração. Pra ele, existem suas pequenas alegrias, o presente e nada mais. Naquele momento, existe aquela alegria e nada mais em volta, seja no espaço ou no tempo.
Outra coisa que garante a felicidade canina é sua ausência de ansiedade. Ele não quer controlar ou prever o futuro. Porque o que lhe importa é o carinho de agora e a bolinha de agora. No máximo ele fica ansioso quando ouve os passos ou o carro do dono, ou bem antes da bolinha ser jogada. Mas você nunca verá um cão ansioso com a bolinha que será jogada semana que vem. Semana que vem não existe! Amanhã não existe! Só existe hoje, agora. E mesmo que no passado existam cicatrizes dolorosas, sempre há espaço para alegrias de agora. Para um cão, ter paciência para esperar um dia inteiro em casa não é um desafio tão grande.
Não há precedentes para a lealdade de um cão. Ele literalmente dará sua vida pra salvar seu dono ou pensando que o está protegendo. No entanto, não é assim tão fácil conquistar a lealdade do cão. Ele pode comer a carne dada por um estranho, mas não por isso se tornará leal a ele. Não se pode comprar um cão e não tampouco coagi-lo a ter lealdade. Uma vez conquistada, no entanto, dificilmente a lealdade é perdida, porque o cão não é um animal rancoroso. Ele perdoa, esquece, e segue amando.
Se há algo em mim que não se assemelha ao cão é o hábito de rosnar e latir. Meu lado tigre aí fala mais alto e prefiro observar em silêncio. Morder antes de emitir som é meu lema. Afinal, cão que ladra não morde! E não morde porque a pessoa já fugiu! Mas morder é bom, especialmente quando se faz isso defendendo seu território o seus entes queridos, mesmo que nem sempre o faça da maneira que se espera ou que seja mais apropriada.


An open wound


Tenho uma ferida aberta
Ela pulsa, emana perfume
Mas apesar da dor...
É ela que me faz respirar

A ferida separa um lado do outro
Nada poderia uni-los, sará-la
Mas é ela que me põe em movimento
A dor move a vida, parece

Eu passo pelos lugares
O sangue vai pingando
Parece até infinito
Ele se dilui no mar do cotidiano

Pragmatismos me distraem
Conhecimentos me arrebatam
Mas nada disso seria possível
Sem o perfume de saudade

Dessa ferida aberta que tenho no peito...

Foi de início como a lança do destino
Não poderia ser de outra maneira
Atravessou a minha alma
Pôs tudo em chamas

Depois a ferida secou
Já até ameaçava sarar
Quando foi reaberta brutalmente
Veio pra ficar...

Então eu aperto e deixo sangrar
Que é pra sentir o aroma
Há alguma força no universo
Que não me deixa esgotar...

Chamemos isso de amor...


A Sombra e o por do sol


Há algum tempo senti
A brisa de uma bela manhã
A luz do sol invadiu o meu quarto
Despertei com vigor

E apesar de algumas nuvens
Apesar da leve chuva
O sol iluminou o dia
Quis congelar aquele momento

Em minha tolice
Quis que a chuva parasse
Mas que chuva responde ao nosso desejo?
Antes do meio dia, a sombra chegou

Justamente na parte mais intensa
Quando o sol te queima
Quando o verão mostra sua natureza
Lá estava aquela enorme nuvem

O Dia ficou cinza

Eu procurei saber
Sobre rituais, danças, alguma coisa
Pra mandar a chuva embora
Até tentei alguns

Nada adiantou

O dia passou assim, frio
A despeito da previsão, que dizia o contrário
Até que chegou o entardecer
E eu vi o sol por um instante

Mas logo desapareceu

Entrei novamente em casa
Deixei o guarda chuva na porta
Tenho minha proteção contra a tempestade
Uma cama quente...

Mas passou-se o por do sol
Passou-se o dia, sem que eu o visse
E agora resta a noite, o abismo
Resta mergulhar

E procurar as belezas do submundo

Afinal, o reino dos céus já não me aprova...

A razão e a loucura numa manhã qualquer



Eu sonhei naquela noite que era uma arvore. Com as minhas raízes profundas e meu tronco grosso eu estava sozinho ali naquele campo. O vento, quando vinha, atingia meus ramos em cheio. Então uma nuvem ganhou formato de rosto e riu de mim. Olhei pra baixo, mesmo na ausência de olhos, e percebi uma florzinha. Lembrei dela como se sempre soubesse de sua existência, como se estivesse gravada na minha alma de tal forma que a conhecia totalmente. Quando eu a vi balançando com a brisa, por mais que não pudesse explicar, lembrei-me de sua essência e pude ver todo o seu ser.
Mas a risada voltou, e com ela veio uma ventania. Eu vi as pétalas dele voarem uma por uma até ela ficar como um graveto. Ela foi arrastada e eu nada podia fazer. Eu nem podia me mover. Aquilo virou um tornado e eu senti minhas raízes se desprendendo do chão. Tudo girou e eu voei.
Acordei na cama como num pulo. Havia uma mulher nua olhando pra mim.

- Pesadelo, querido? – perguntou ela
- Não sei dizer. O que você faz aqui? – disse eu
- Bebeu demais, e não lembra de mim. Imaginei. – disse ela num tom sarcástico desapontado
- Não me esqueci de você, Julia. Apenas lembro-me de você dizer que eu acordaria sozinho. Acontece que eu acordo meio atordoado e vou relembrando as coisas com lentidão quando bebo.
- De lembranças é o que preciso. Você estava por me dizer uma coisa ontem á noite, mas adormeceu e eu não pude te acordar pra ouvir.
- Não me lembro. Diz o que você falava antes de mim.
- Eu falava do meu marido e de sua maldita mania de honra. Falava que acho que não sirvo pra casar.
- hehehehe... Já sei o que eu iria falar.
- E o que era?
- Em primeiro lugar, que fique claro que seu marido é um idiota. Ele serve um imperador corrupto e sanguinário e possui fé numa mentira irracional propagada através das trevas de sua ignorância. Mas isso você já sabe.
- E o que mais?
- Isso de casar... Eu cheguei aqui alguns meses antes do seu casamento e tivemos algo como um caso, mas só com nossos olhares. Você nunca precisou dizer muito: estava escrito nos seus gestos, no seu jeito de falar, de olhar. Você não é pra casar.
- Nossa, falando assim você parece me desavalorizar!
- Pro diabo! Desvalorizar nunca! Acontece que você ama demais pra se apegar!
- Não entendi. Eu não sou nenhuma madre Teresa não, viu?
- Eu não tenho o costume de falar do que não sei, então não falo dessa Teresa e nem da forma como ela ama. O amor de que falo aqui é bem carnal.
- Ah, que ótimo! Está me chamando de vadia!
- Esse nome é baseado numa linguagem que não reconheço. Pra mim, seu espírito é demasiadamente leva e seu amor é perigosamente genuíno. É por isso que você não respeita as regras: porque você ama, e o amor não respeita nenhuma regra. Você não precisa dizer, Julia. Eu vejo nos seus olhos que você ama certo sujeito aí da vila. Particularmente, nunca me interessou. Ao menos tem hábitos de higiene, coisa rara nesses tempos turbulentos.
- Assim tudo parece mais aceitável. Mas como viver como eu mereço como eu sou?
- Nesses tempos, onde você não é pessoa, mas ovelha, é difícil. Mas você é moça hábil e nós sabemos, então pode fazer dinheiro. Só não espere ser respeitada pelos adoradores das regras. Os membros do rebanho não gostam de ovelhas desgarradas, pois elas servem de lembrança de que há um mundo além das cercas.
- Que inferno! Se eu fosse rica, se eu fosse homem, poderia ser livre!
- Estamos no meio do nada, Julia. Podemos não estar bem situados no tempo, mas no espaço, isso com certeza. E você sabe que meu teto é seu, contanto que entenda que não é só seu.
- Que deus me livre de viver contigo! Você tem mania de banho, nunca organiza suas coisas, ronca como um lobo rosnando e nunca está satisfeito! – disse ela enumerando com os dedos.
- Calúnias, todas!
- Defenda-se, então!
- Em primeiro lugar, por mais que sabão seja uma coisa cara, por mais que venha de longe, sem ele nossos corpos fedem a merda. Nem imagino como você pode ter alguma coisa com seu marido com todo esse fedor. Por Deus, com uma armadura o dia inteiro debaixo do sol!
- Mas dizem que tomar banho todos os dias faz mal á saúde...
- Também dizem que mulheres voam com vassouras. As pessoas dizem muita idiotice.
- Tudo bem, dessa acusação você se safou, mas e as outras?

Eu parei, olhei pra ela e lhe dei um beijo lento, duradouro. Ela afastou meu rosto e me olhou com aquele olhar inquisidor, de quem não vai deixar passar. É a única pessoa que consegue fazer esse olhar e me agradar.

- Ta bem! Vamos lá, a próxima acusação era sobre minha organização, certo?
- Isso.
- Então, o que é a organização senão uma tentativa fútil do ser humano de controlar o incontrolável? Empilhar, criar categorias e divisões! Pro diabo com tudo isso!
- Isso não justifica nada. Tem dias que mal da pra andar nesse lugar!
- E não há um dia, no entanto, que você deixe de sorrir por isso quando entra aqui.
- Verdade. Eu te considero condenado, mas não precisa de punição além dos tombos que você já leva aqui quando bêbado.
- Fato. Meu pé dói desde não sei quando... mas então, do meu ronco e não tenho nenhuma evidência. Então é minha palavra contra a sua!
- Argumento desonesto. Pergunta á Gabriela, Joana ou quem sabe à Aline! Certamente ficarão do meu lado!
- Sério que você já ficou sabendo da Aline? Mulheres e a fofoca...
- Todos sabem das mulheres que você “desonra”!
- Enfim, o que você quis dizer com nunca estou satisfeito?
- Mesmo com todas as mulheres e mesmo com o vinho, você leva pelo menos uma hora antes de me deixar sair dessa cama!
- Ora... Como isso não é uma virtude? Não gosta de aproveitar o vigor da minha juventude?
- É que você parece estar procurando algo, sabe?
- Como assim?
- Você faz amor com a ânsia de quem corre numa jornada atrás de algo importante... Não sem explicar direito.

Naquele momento eu lembrei da florzinha despedaçada pelo vento, mas não a mencionei.

- O meu rumo é o seu prazer e nada mais! – disse sorrindo
- Fugindo de mim agora? – perguntou ela
- Não entendo.
- Quando tento mergulhar mais fundo na sua alma você foge do assunto assim.
- É que me ocorre uma florzinha, uma borboleta, um pequeno pedaço de algodão. Sempre sendo arrancado de mim violentamente. Isso me angustia, Julia.
- E o que isso significa?
- Meu passado, aquilo que me atormenta.
- Foi essa flor que foi arrancada de você que te manteve solteiro com todo esse dinheiro?
- Não. Ela sabia que minha natureza é volátil. Casado ou não, eu viveria dessa mesma maneira.
- O que aconteceu com ela, Leandro?
- O vento a levou... – disse antes de enfiar minha cabeça no cobertor.

Lágrimas escorreram pelo meu rosto enquanto Julia me acariciava a cabeça.

- Ele pode até tê-la levado pra longe dos seus olhos, mas não pra longe do seu coração. Eu nunca te vi tão triste assim...
- Ela vive em mim. Sempre viverá, mesmo depois da minha morte.
- A morte... Porventura o importante não está na vida aqui e agora?
- Ah sim. E sabe o que eu vejo agora?

Ela me olhou surpresa, como quem olha pra uma criança que fez besteira.

- Você acabou de se abrir pra mim e já vem me olhando com esse olhar de desejo!
- Sabe, eu estava lá no passado e você me trouxe pro presente. No presente eu vejo você e sinto desejo.
- Isso é loucura! Como você pode ser tão lascivo?
- Eu inventei um termo novo, que talvez em alguns séculos fique famoso. Sad fuck. É lenta, longa e banhada a lágrimas. Tive meus melhores orgasmos assim!
- Louco, fique longe de mim – disse ela rindo.

Mas eu a agarrei. Por uns segundos ela lutou e tentou se soltar, mas logo desistiu. Deitamos de lado e ela me deu as costas. Minhas mãos correram por todo o seu corpo enquanto minha boca marcava sua pele branca. Aqueles ombros, aquele pescoço. Sempre adorei beijá-los. Eu soltava o ar quente na nuca dela e a assistia se contorcer. Ela também sabia me agradar. Passava o braço por trás da minha cabeça e acariciava minha nuca.

- Louco...! – disse ela entre os suspiros

Eu meu soltei dela e desci minha boca até sua barriga. Ela sempre adorou que eu beijasse sua barriga enquanto lhe acariciava os peitos. Eram movimentos ensaiados, que nós tínhamos. Desci até os lábios dela. Úmidos, com cheiro de sexo. Provavelmente fizemos muito na noite anterior, mas não me lembro bem. Ela colocou as pernas em volta da minha cabeça e apertou. Adoro quando ela faz isso, embora não seja sempre. Como sei do ritmo dela, comecei bem devagar com a língua e com a ponta do dedo logo abaixo fazendo movimentos pra cima e pra baixo. Eu sorria por sentir a musculatura do abdome dela se retrair, por ouvir os suspiros. Conforme o ritmo com a língua aumentava e se diversificavam as formas de movimento, meu dedo ia se aprofundando. E com facilidade, se melando no interior dela.
Quando estou nessa situação eu perco a noção do tempo. Chego numa espécie de êxtase na ocasião de a mulher estar apreciando. Por isso não sei quanto tempo passou e nem me importo. Só sei que num momento meu dedo estava entrando e saindo completamente e eu já não movia apenas a língua, mas também a cabeça. Eu senti a mágica, meu dedo sendo comprimido lá dentro. Meu convite.
Subi lentamente pra chegar na outra boa, mas ela me empurrou e virou-se de bruços. Levantou e ficou de quatro olhando pra mim. Balançou o quadril de um lado pro outro até eu segurá-lo com firmeza. Entrei rápido, não havia qualquer resistência. Os movimentos eram tão fluídos...
A vantagem daquela casa grande era que os barulhos dos impactos, da cama, nossos gemidos eram todos inaudíveis. Eu cansei daquela posição, pois queria sentir a pele dela. Então joguei meu peso sobre suas costas e ela caiu de bruços na cama. Fechei suas pernas, que até então estavam abertas e levei adiante meus movimentos lentos. A sensação de que ela está mais apertada sempre me estimulou.
O cabelo negro dela faz um lindo contraste com a pele clara e os suspiros parecem ficar mais intensos nesse momento. Eu continuei acelerando até ver a expressão facial dela mudar. Aí comecei a aumentar a força, aumentando com isso o barulho. Ela cerrou os olhos e abriu a boca. Senti as contrações me dizendo pra continuar ali. E foi o que fiz, por alguns minutos.
Saí de dentro dela por uns segundos.

Vira de frente pra mim?

Ela virou, com o corpo mole e um sorriso lindo no rosto. Beijei sua boca impetuosamente com os olhos firmemente cerrados. Sem desgrudar de sua boca, entrei novamente. Foram os movimentos que interromperam o beijo, pois acabei suspirando. Segurei com firmeza nos ombros dela, que em resposta me prendeu com suas pernas.

Alguém bateu na porta da minha casa, me irritando por uns instantes.

- Um minuto! – gritei

Ela olhou pra mim rindo.

- Um minuto, é?

Voltei pra ela como se nada tivesse acontecido e realmente acelerei meu ritmo pra terminar. Embora não tivesse sido a melhor que já tivemos, tinha sido interessante. Mas surpreendentemente, quando cheguei ao orgasmo ela chegou junto. Isso nunca tinha acontecido.

Fiquei parado um pouco ali, até a porta voltou a me incomodar, então tive que sair. Vesti qualquer coisa e saí do quarto, mas não sem antes olhar pra e vê-la a se vestir apressadamente. Ela não me olhou de volta, então desci as escadas correndo atendi a porta.
Foi só aí que eu fui perceber que estava chovendo intensamente. Na porta estava um jovem noviço e uma moça exuberantemente linda... E limpa!

- O que vocês querem aqui?- perguntei
- Precisamos de abrigo. Essa foi a primeira casa que encontramos. Você pode nos ajudar? – disse a moça
- Eu nunca negaria com você pedindo dessa maneira. – respondi
- Mas sua esposa não acharia ruim? – perguntou o noviço olhando para dentro da minha casa.
- Não tenho esposa, rapaz. Entrem e saiam da chuva. Vou preparar um banho pra vocês.
- Mal conhece as visitas e já obriga a tomarem banho! Você é louco, Leandro! Louco!
- É... Você tem razão... – respondi.