Força de vontade



É a máxima desse mundo
Força de vontade, força de vida
Vá, adiante, cabeça erguida
Mas eu nem sou desse mundo...

Aqui tem coisas simples
Que desaprendi a apreciar
Aqui os detalhes são mais interessantes
O principal não tem graça

As pessoas andam pra lá e pra cá
Elas querem, elas perseguem
Nem sabem quem são
Mas isso nem importa

Eu sei quem sou, de onde vim
Já cheguei a uma conclusão satisfatória
Não sei meu destino, mas sei quem sabe
Só não consigo andar

Eu sei o caminho do paraíso
Mas não tenho força pra saltar
Não consigo chegar lá
Porque não tenho nenhuma

Força de vontade

O herói precisa de uma musa
O algoz de uma vítima
O salvador de inocentes
O sábio de loucos

Todos possuem uma fonte
Um por amor, outro por ódio
Um por piedade, outro por indignação
Mas eu não

Não tenho musa, nem vítima
Não tenho a quem salvar
Tampouco alguém a ensinar
Onde tudo foi parar?

Às vezes esqueço que sou louco
Penso que não inventei meu mentor
E me pergunto num tom pesaroso
“Porque você me escolheu?”

“Porque os miseráveis precisam de mais.”
“São desajustados por fora,”
“Vazios por dentro”
“Precisam de grandes espíritos”

Acerca do Multiverso Social e sua implicações práticas (pessoais e coletivas)

Introdução

A natureza dessa idéia é adaptativa. Não se trata bem de uma concepção explicativa, pois as explicações em si, imagino, parecerão óbvias. O que concebi não passa de uma racionalização acerca da organização social, o que me permitiu uma maior capacidade de interagir com outras pessoas. Não só esse pensamento é uma muleta de auxílio ao relacionamento com o próximo, mas também apresenta o que chamo de espectro da personalidade individual: não chego nem perto de dizer o que uma pessoa é em si, mas falo sobre as manifestações e isso possui implicações práticas muito maiores do que definições abstratas.
Como eu asseverei antes e volto a deixar claro, esse texto não é pra ser levado a sério, a não ser que o leitor realmente ache algo de útil nele: na verdade, imagino que a grande maioria dos textos dessa natureza devam ser tratados assim, sejam do autor que for, e é lamentável que isso não aconteça.
Falarei a seguir de duas faces do que chamo de multiverso social, definindo o efeito da globalização sobre ambas, além de me usar como exemplo pessoal. Se o leitor quiser saber algo sobre mim, provavelmente encontrará a informação que busca nesse texto (embora, com minha visão narcisista projetada no outro, eu não seja capaz de imaginar um motivo plausível para alguém querer uma coisa dessas) tanto no seu conteúdo como na forma como lido com os dados e construo o pensamento.
Que não se assustem com o fato de que citarei alguns dos meus autores preferidos: estou exercitando minhas faculdades não-narcisistas.

Sobre o multiverso espacial

Em suma, para dar uma definição teórica, um multiverso espacial é um senso comum de algum lugar. Sociedades do passado possuíam um multiverso espacial muito mais forte e determinante do que as contemporâneas, embora alguns lugares (especialmente os pequenos) tenham esse multiverso intacto até o presente momento.
Pra colocar de maneira clara, o multiverso espacial é a tendência de certos pensamentos e hábitos se repetirem em qualquer parte do mundo. Em cada parte do mundo (ou mesmo de uma cidade) se forma um universo isolado, e quando dois universos espaciais diferentes se encontram, há estranhamento. Isso aconteceu, mais radicalmente, quando os indígenas entraram em contato com os invasores europeus, ou quando um jogador de futebol pobre brasileiro se viu na Europa. Os lugares, bem como as classes sociais, criam diferentes universos que dificilmente se misturam: antes, é mais fácil um sobrepor o outro.
Quando me refiro à classes sociais como parte do multiverso social, quero falar abstrata e praticamente: não só cada classe ocupa um “lugar” na sociedade, como também, de um modo geral, vivem em regiões diferentes e não se misturam com freqüência.
É uma tendência de pessoas que não possuem a própria personalidade individual definida se guiarem por universos espaciais. Numa linguagem simples, o indivíduo se identifica com o senso comum de seu bairro, de sua classe social, de sua turma na faculdade. Ele não faz mais do que se identificar com a forma rudimentar de pensamento que parece surgir em meio a grupos, como uma mentalidade grupal.
Tal capacidade já foi crucial, como uma questão de sobrevivência, especialmente em tempos remotos em que o indivíduo precisava estar ligado ao grupo para sobreviver. Para os primitivos, é completamente natural que todo o seu universo seja sua tribo, que sua visão religiosa e praticamente tudo o que ele é seja determinado pelo grupo. Jung relatou, por exemplo, o tratamento que certas tribos davam ao sol era tão comum para os nativos que eles riam dele por não entender o óbvio (que você tem que cuspir na mão quando o sol nasce, por exemplo). Os primitivos viviam num universo, e Jung noutro. Provavelmente eles não entenderiam, por exemplo, qual era o motivo de termos tantos edifícios com tanto espaço e ainda assim deixarmos nossos companheiros dormirem nas ruas.
Em termos capitalistas, podemos ver americanos intrigados com o fato de que, ao menos aqui no rio de janeiro, lanchonetes tenham frutas amostra e façam sucos naturais na hora, pois isso não é comum por lá, ou talvez um brasileiro ache estranho que não sirvam guaraná por lá. No entanto, tanto o americano acha normal nunca beber guaraná quanto o carioca acha comum que sucos naturais sejam preparados diretamente da fruta.
Claro que, como sou do tipo intuitivo, não poderei de colocar influências desses universos no nosso pensamento.
Temos, por exemplo, o pensamento americano com uma forte tendência ao pragmatismo, com quantificações e medidas exatas, enquanto que o pensamento alemão se comporta de maneira diversa: Freud baniu Reich do meio psicanalítico pelo fato de que ele quis quantificar a Libido, tranformando-a no que chamou mais tarde de “Orgone energy”.
Não tenho a intenção, aqui, de me aprofundar nessa questão. Não só por não dispor de dados para tal, mas também porque isso foge do escopo desse texto. Provavelmente ainda se passarão uns cinco anos antes que eu volte a me aprofundar nessa questão.
Os universos espaciais não se limitam a determinar juízos racionais. Na verdade, observei que geralmente são juízos de valor que mais são influenciados por esses universos: existem mais coisas que um grupo gosta ou despreza do que coisas que o grupo considera sensatas e racionais. Isso precisamente porque os grupos não formam um pensamento muito profundo, devido à necessidade de aceitação dos indivíduos, que bloqueia a criatividade individual.
Na organização de universos espaciais, o indivíduo que quiser realmente se integrar só terá três alternativas: ele pode efetivamente suprimir a individualidade, se tornando parte do grupo, fingir que suprimiu a própria individualidade e lidar com o desconforto e o risco da desonestidade ou assumir quem realmente é e ser excluído.
Os indivíduos que não possuem qualquer consciência de sua própria identidade não precisam se preocupar, pois o grupo tratará de mantê-los assim. Os que têm uma vaga idéia podem se apegar a convicções e esquecer da individualidade (que simplesmente não se desenvolve em pessoas demasiadamente convictas, pois a personalidade total sempre terá algo que contradiz alguma convicção). Aqueles que percebem quem são e não podem se esquecer, no entanto, permanecerão desajustados e excluídos. Perceber quem somos não é um ontológico, mas apenas as manifestações claras. Como demonstrarei mais a frente, há formas de falarmos de nós mesmos sem dar uma definição final (conservando, assim, nossa ignorância sobre o que somos em essência [se é que isso existe]) e de esse discursos ter implicações práticas sobre como podemos lidar com o mundo e sobre como os outros nos entenderão. Para isso, preciso ir adiante na questão do multiverso psicológico.

O multiverso psicológico em implicações pessoais

Como o introvertido que sou, naturalmente falarei de como essa forma de pensamento pode, de maneira rápida e prática, nos dizer algo sobre quem somos e nos trazer material para reflexão posterior, bem como pode nos ajudar a criar uma imagem que corresponda mais completamente ao que sentimos ser (sentir não equivale a saber).
Para isso, me usarei como exemplo, definindo meu próprio multiverso psicológico e seus universos.
Faço parte de universos que englobam música, literatura, pensamento, jogos eletrônicos e religião. Alguns possuem menor relevância do que outros, e vou tentar deixar claro nos exemplos abaixo ao definir cada uma dessas e suas ramificações.

Em música, tenho a tendência de gostar de heavy metal e seus variantes mais pesados, grunge, e diversos formas de rock agressivo. Também me agradam músicas mais brandas, como Norah Jones ou BB King. Em termos pessoais, isso parece pra mim como um sinal de dicotomia simples: há um lado selvagem e agressivo, enquanto que outro é mais calmo, até mesmo passivo. Nesse caso, são sentimentos que se refletem na sensação que a música me passa: Obvio que a mesma música que percebo pode passar outra sensação a outra pessoa que gosta delas, e ter outros sentimentos associados às sensações. Por isso que isso só serve pro indivíduo, de si pra si: porque uma pessoa pode gostar da mesma música que eu por razões diferentes e associar sentimentos bem diferentes á música. Embora eu coloque tanto relativismo, parece que todos percebem que uma música é agressiva ou outra é triste. Isso é fácil de perceber, mas é reducionismo dizer que uma pessoa ouve uma música agressiva por ser agressiva, ou uma triste porque é triste. De um modo geral, o gosto musical pode servir como ponte na formação de grupos, mas não são, de um modo geral, duradouros senão entre músicos profissionais.

Em literatura, me agradam poesias, contos e romances. No entanto, há uma relação direta entre o gosto literário e o músico: há uma dimensão sombria, agressiva, e outra “cor de rosa” (como diz um amigo meu). No entanto, como sou escritor, há uma mistura efetiva de tudo o que sou dentro da criação artística: isso não acontece na música porque eu não crio, apena ouço. Poderia acontecer se eu fosse músico. Muito do que eu disse na parte da definição de música também se aplica à literatura, embora sejam expressões diferentes. Naturalmente ambas lidam com sentimentos e sensações, embora a literatura possa ter mais implicações intelectuais do que a música (a não ser em poesias).
A maior diferença, no entanto, é que a literatura possui maior relevância pra mim, já que tenho o hábito de escrever e sentir as minhas próprias criações. Através da criação artística, aliás, é como se o que eu sou fosse sendo revelado por uma via que não a racional, e a criação vai, junto com outras forças, revelando a mim mesmo que eu sou, embora muitas coisas sejam impossíveis de se exprimir em meios racionais.

Em pensamento, tenho interesse por Psicologia, Filosofia (especialmente filosofia da ciência), Sociologia, e pensamento “esotérico”. Seria muita ingenuidade pensar que, num texto que não trata desse assunto especificamente, eu poderia explicar satisfatoriamente a razão dessas preferências (e nem possuo uma explicação terminada). Deixo, no entanto, nomes que me agradam: Jung, Fromm, Schopenhauer, Feyerabend, Marx, Proudhon, Kardec, Goswami, Lao Tse, etc.
Meu pensamento parece se direcionar à duas direções, e esse texto mesmo é um reflexo de ambas: Uma à compreensão do indivíduo, recorrendo a conceitos psicológicos e místicos,e outro à compreensão da sociedade em si. A primeira pra descobrir quem sou, e a segunda pra me relacionar melhor com o próximo. A despeito do meu esforço, a primeira sempre acaba sendo prioridade.
O pensamento filosófico é, por um lado, uma forma de libertar o intelecto das amarras e esquecer de regras e limites na imaginação, e por outro pra pensar o pensar: Pra expandir o conceito de realidade na medida do psicologicamente possível (porque desejos e tendências influenciam o pensamento) e tentar entender como se processou esse pensamento (porque [por algum motivo] esse é o meu maior objeto de estudo no momento).
Minha criatividade literária e intelectual se misturam em prioridade, mas a tendência é a intelectual sobrepor a sentimental: me considero melhor como filósofo do que como poeta, embora aprecie a poesia tanto quanto a filosofia¹.

Os jogos eletrônicos me atraem desde a infância. Depois que ganhei um Master System 3 com Sonic percebi que bonecos e carrinhos não eram divertidos de verdade. O vídeo game não era tão inanimado: possuía interatividade e um universo a ser descoberto. Qual não foi minha satisfação quando reuni todas as esmeraldas e percebi que aquilo limpava a terra.
Pensando sobre essa questão, as vezes vejo essa tendência como uma fraqueza ou um vício, mas nem sempre. Na verdade, percebi que meu segundo livro e sua futura continuação ficariam perfeitos se expressos em forma de jogo. Criando um jogo, eu usaria a criatividade intelectual pare conceber mecanismo a serem programados e a sentimental para dar vida literária ao roteiro (porque me aborrecem os jogos sem roteiro, sem personagens dignos de menção ou estória decente). Obvio que a criatividade intelectual seria um tanto matemática, talvez até mesmo física, e minhas aspirações psicológica e filosoficas teriam poucas utilidade nesse meio. Sendo essas aspirações as minhas preferidas, e sendo o meio intelectual o mais atraente, provavelmente a vontade de criar um jogo, mesmo unida às aspirações literárias, não terá força para se tornar prioridade, embora não precise ser prioridade pra ser executada.

Como um intuitivo, jamais poderei escapar das questões religiosas. Na verdade, me chamem de esquizofrênico, tenho o hábito de conversar com o Daimon. Pode ser um espírito, uma personalidade número 2 (Jung), um anjo da guarda ou o nome que quiserem dar. O que sei é que nos momentos de mudança, aqueles em que fico desorientado, Daimon intervém e me traz certas epifanias que basicamente definem todo o curso da minha vida. Eu ousaria dizer, aliás, que eu (enquanto Ego) executo ao invés de planejar: Não sou, de maneira alguma, o senhor do meu próprio destino. Poderia ser, mas há algo como uma potencialidade uma Semente de Carvalho(Hillman) que pede tão insistentemente para ser seguida que eu não consigo ver nada tão sedutor, tão atraente, como ouvir e seguir essa voz interna: não, não aceito argumentos de que isso é um condicionamento externo proveniente de educação religiosa ou que seja simplesmente loucura.
Tenho tendências espíritas, taoistas, Budistas e até mesmo Cristãs², mas, no final das contas, eu tenho uma visão religiosa própria, que, por ser todas essas juntas com detalhes de outras filosofias, não é nenhuma delas especificamente.
Este é, de longe, o aspecto mais relevante da minha vida, embora minhas atitudes demonstrem maior tendência para o intelectualismo: até mesmo o intelectualismo foi determinado por essa “força oculta”. Por isso que se me pedirem pra usar apenas uma palavra pra me definir de maneira inteligível, direi que sou um místico.

Depois de toda a sessão de confissão, cabe chegar ao ponto de adaptação social, tendo por base essa informação e outras relevantes que serão apresentadas a seguir.

O multiverso psicológico em implicações sociais

O multiverso psicológico, mais intensamente com a expansão dos meios de comunicação e com a globalização, está se tornando mais influente do que o espacial. Trata-se da formação de grupos baseada em preferências ao invés de localidade. Em grande metrópoles isso aparece de maneira mais clara.
Há dois documentários interessantes sobre o universo psicológico do Heavy metal³ que demonstram, de maneira interessante, a maneira como isso acontece.
A um músico experiente, numa entrevista, foi perguntado se ele percebia diferenças nos públicos de diferentes países.
Ele relatou que, no Japão, tocou num show em que os expectadores tiveram que ficar sentados por conta de regras rígidas típicas da cultura japonesa, o que demonstra o efeito do multiverso espacial, mas também asseverou: “Kids are Just kids. No matter where they come from” ( Jovens são só jovens. Não importa de onde vêm). Em todos os cantos, os shows de heavy metal parecem repetir certos padrões: Gente pulando e gritando, roda punk no meio da platéia... E não é só o show, mas também hábitos diários, tipo de roupa, cortes de cabelo. Na verdade, é freqüente que em diversos lugares se formem grupos de “metaleiros”, que não se organizaram por pressão da sociedade local, mas, ao contrário, à despeito da pressão contrária.
Percebi isso claramente quando ia ao Show do Matanza com colegas, todos vestidos de preto alguns com correntes e garrafas de cachaça nas mãos. Um grupo de moleques desafiando a cultura local em detrimento de outra global na qual podiam manifestar mais efetivamente a própria individualidade: porque pra ir nesse show, você tem que ser desse universo.
Esses grupos se formam, tanto física quanto virtualmente (internet) de maneira espontânea em relação a todo o tipo de universo que posso imaginar.
Há grupos de literatura, debate e pesquisa intelectual, religião (ou, no meu caso, especulação mística), música e até mesmo grupos que se reúnem pelo gosto comum por certos tipos de jogo(como o RPG). Na verdade a quantidade de universos psicológicos é tão grande que eu nem ousaria falar sobre todas elas, mas o ponto é que dificilmente encontraremos alguém que realmente vive nos mesmos universos, mas certamente encontraremos quem faça parte de algum dos nossos universos.
Em suma, para uma vivência coletiva saudável, eu me envolvo num grupo de escritores (Bar do escritor), embora não tão assiduamente, em grupos de discussão racional, de especulação mística, e até de grupos em shows de heavy metal ou de amigos de infância com os quais jogo (Worlf of Warcraft, atualmente).
Assim, mesmo sendo desajustado no conceito de grupo tradicional (o especial), ainda assim consigo me encaixar em subgrupos, que fogem completamente á compreensão tradicional e só se estabeleceram por causa dos novos meios de comunicação. Na verdade, creio que tudo isso, nesse século, possibilitará um maior desenvolvimento da individualidade humana, sendo um passo histórico nunca dado devido ás pressões locais que não tinham nada para contrapor sua força tirânica. Muito prazer, esse sou eu e é assim que me adaptei ao mundo. Espero que isso possa ser útil para alguém...
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1)    Explico o fenômeno segundo os tipos psicológicos de Jung, já que sou intuitivo com função auxiliar pensamento: o sentimento vem logo depois do pensamento, tanto em prioridade quanto em desenvolvimento.
2)    A despeito do fato de que eu passei anos odiando essa religião, partes dela foram integradas profundamente na minha cosmologia e me agradam profundamente.
3)    Metal: a headbanger’s journey e Global Metal. Ambos podem ser encontrados na interner, tanto em blogs quanto em servidores P2P (pirate bay, mininova, etc.).

Sobre o Zeitgeist como um fenômeno


Porque eu vou postar esse texto em dois lugares, deixo logo claro que me refiro ao documentário Zeitgeist: The Movie e ao Addendum, publicados respectivamente em 2007 e 2008.
Já não é a primeira vez que escrevo sobre esse documentário. Quem não lê as coisas que escrevo talvez não conheça o nível de narcisismo que o que eu escrevo tem. Comentar as idéias de outras pessoas é uma coisa que raramente eu faço, muitas vezes porque isso exigiria investigação meticulosa, marcar meus livros (não gosto muito disso) e também uma boa carga de esforço para a qual geralmente não tenho motivação.
Assim, se eu chego a escrever sobre as idéias de alguém, isso quer dizer que o autor é muito admirado. Tenho, no meu blog, um marcador para Jung, por exemplo.
No entanto, cá estou aqui começando a escrever novamente sobre o Zeitgeist. Na verdade, encontrei inconsistências nesse documentário, especialmente sobre a forma como torna mágico o poder do método científico e também sobre o tratamento irresponsável que dá as religiões. Em meu narcisismo, não há motivos plausíveis para eu estar escrevendo isso.
O curioso aqui é que vou escrever precisamente sobre o motivo de eu estar escrevendo, que saltou à minha mente enquanto eu lia uma citação de Stuart Mill:

“Mas esse Estado de coisas é necessariamente transitório: algum corpo particular de doutrina finalmente arregimenta a maioria em torno de si; organiza instituições sociais e modos de ação em conformidade consigo mesmo; a educação incute esse novo credo à nova geração sem os processos mentais que conduziram a ele; e ele, gradualmente, adquire exatamente o mesmo poder de opressão por longo tempo exercido pelos credos cujo lugar tomou.”

Não estou certo, porque a citação de Mill foi encontrada num livro de outro autor (Contra o método – Feyerabend), se ele criticava essa prática com um ideal a ser contraposto, acusando esse fenômeno de ser um erro que “não deveria acontecer”.
Mas o que me deixou abismado é que isso me fez voltar à minha crítica feita ao Zeitgeist, e me lembrou de um tópico que encontrei ao acaso.
Se você não está lendo isso na comunidade do próprio Zeitgeist, então pode não saber que sou moderador por lá. Há algumas horas atrás eu entrei na pasta lixeira como que ao acaso, e fui para a última página. Posts de janeiro de 2008 estavam lá, e um me chamou a atenção por ser o Zeitgeist sendo anunciado numa revista.
Lembro de ter pensado algo como: realmente, o Zeitgeist é o símbolo do novo Zeitgeist.
Eu estava conversando naquele momento, então não levei essa construção adiante, mas agora isso veio me perseguir, então vou expor a concepção. Bem simples, por sinal.
É comum que se atribua a um vilão antigo o surgimento de uma ideologia. Por exemplo, dizem que foi por culpa de Constantino que o “terrível” Cristianismo “assolou” nossa sociedade. Que se ele não tivesse distorcido o cristianismo ou mesmo se não o tivesse alimentado, nosso mundo estaria “melhor”. Isso eu já li dezenas de vezes na internet, especialmente no Yahoo! Respostas: parece que é uma opinião normal.
No entanto, o que eu percebi nas minhas pesquisas, e nem foram tão rigorosas, foi que o cristianismo funcionou como um fenômeno. Ele simplesmente chegou e se multiplicou, fora do controle daqueles que estavam no poder, e se tornou tão grande que dobrou os homens mais poderosos da época.
Da mesma forma o iluminismo, com o novo e(para a época) empolgante materialismo, trouxe novas possibilidades e levou o pensamento coletivo. A igreja, o Zeitgeist anterior, lutou contra até com propriedade, mas acabou sendo dobrada, da mesma forma que o império romano também foi.
E não foram vilões que fizeram isso acontecer. Simplesmente aconteceu, foi uma transição de mentalidade. Talvez o leitor não esteja familiarizado com meu misticismo, mas eu não posso deixar de ver algo de teleológico nessas transições, principalmente por causa da visão Junguiana sobre o assunto. No entanto, isso fica para outra ocasião.
O caso aqui é que não foi um banco mundial, e nem Harvard que começou o Zeitgeist. Foi Peter Joseph, um músico que trabalha com propagandas (até o que sei) e que nem mesmo se dedica à vida acadêmica.
Ele não disse novas teorias revolucionárias e nem recebeu apoio da mídia Mainstream, e ainda assim a comunidade brasileira sobre seu documentário no Orkut tem quase 9 mil membros!
Será o “Zeitgeist” um sinal, um símbolo para o próximo Zeitgeist?
Não sei dizer, mas idealistas jovens estão se multiplicando, assim como acontece com as novas idéias. Os velhos pensadores não aceitam a idéia, pois não é parte de seu Zeitgeist, mas os que ainda não transformaram seus cérebros em pedra começaram a abraçar esse “movimento” apaixonadamente. E, pasme, isso está acontecendo voluntariamente!
Parece que, da mesma forma que a igreja mantinha livros considerados anátema escondidos, tendo eles a chave para o paradigma iluminista (que endeusou os gregos), também o nosso sistema criou dentro de si a chave para a própria destruição. A comunicação em rede.
Se a internet se mantiver, e não houver monopólio, pessoas voluntariamente continuarão a agir por aí, espalhando informação sem limite metodológico, ideológico, econômico...
E os nossos idealistas, nossos jovens (estou entre eles) estão se apaixonando pelo novo Zeitgeist. É um conjunto de idéias novo, e como todos os novos possuem inconsistências. Precisa se expressar segundo métodos novos, porque não se pode usar os termos do pensamento a ser contestado para contestá-lo: não há como, por exemplo, falar sobre existência além da matéria em premissas materialistas, da mesma maneira que não se pode falar de um novo sistema econômico usando premissas capitalistas.
Assim, criou o termo economia baseada em recursos e um novo e hipotético sistema, que, apesar de possuir muitas falhas, ativou a imaginação da nossa época, tocou tão diretamente o nosso Zeitgeist que, mesmo sem a mídia, ganhou espaço: e não foi em cátedras escondidas, mas em pessoas comuns, não necessariamente envolvidas com debates intelectuais (não estou presumindo que essas pessoas são especiais). É uma ideologia viva!
Assim como qualquer idéia nova em qualquer campo, essa ideologia passará por muita teorização e, então, muitos dados, fatos, informações, serão reunidos e feitos relativamente coerentes. Noutras palavras, o que estou querendo dizer que a reação ao filme não se deve ao gênio de Peter Joseph, mas que ela não passa de um sinal.
Vivemos numa época em que a mídia massifica a população, e todos vivem num estado de excessiva atividade física (lógica vazia, esforço mental e físico) por conta do trabalho e paralisia mental por conta de estratégias sofisticadas de manipulação.
Obvio que o capitalismo é um sistema extremamente flexível em diversos aspectos, e que possui meios muito mais eficazes de coerção do que o império romano ou a Igreja. Enfrentar o controle da mídia é coisa difícil. Mas, à despeito da força da mídia mundial, Chávez tomou o poder, e quando fazem manifestações contra ele, outros se levantam e fazem manifestação à favor. Gostam de demonizar o indivíduo, como se ele fosse algo além de um símbolo. Como se a mobilização do povo fosse apenas fruto de maquinações ditatoriais de um megalomaníaco.
Mas não se trata de manipulação: até porque, a Fox News deveria ter mais conhecimento sobre manipulação de massas do que Chávez, não?
Na verdade ele também é um sinal desse Zeitgeist, pelo que percebi, e o mundo está se movendo enquanto eu escrevo.
Podem destruir a Venezuela, matar os novos vilões subversivos e manipular a mídia o quanto quiserem: não está no poder de alguns homens realmente decidirem a mentalidade geral.
O novo Zeitgeist, com conteúdos ainda não revelados claramente, se multiplicará feito uma praga na pele. Quanto mais obstinação nós temos em coçar, maior é a velocidade com que ela se espalha. Só que não há um remédio para essa “praga”.
Creio que não fui só eu que senti algo como uma sensação de despertar ao assistir ao documentário.
Essa mudança de Zeitgeist não começou na nossa geração e provavelmente não será efetivada nela, mas é inevitável. Segundo o que proponho, estamos efetivamente em uma fase de profunda transição: as práticas de hoje serão consideradas selvageria e, talvez, um século.
E não se trata de racionalidade, não serão os argumentos que moverão essa mudança. É uma força oculta, irracional, envolvida por diversas características consideradas alheias ao meio acadêmico, como postula Feyerabend:

“O ensino e a defesa de padrões jamais consistem meramente em colocá-los diante da mente do estudante e torná-los tão claros quanto possível. Supõe-se que os padrões tenham igualmente a máxima eficácia causal. Isso faz que seja realmente muito difícil distinguir entre força lógica e o efeito material de um argumento.
(...)
A criação de uma coisa e a criação mais a compreensão plena de uma idéia correta da coisa são com muita freqüência partes de um mesmo processo indivisível, e não podem ser separadas sem interromper esse processo. Tal processo não é guiado por um programa bem definido e não pode ser guiado por um programa dessa espécie, pois encerra as condições para a realização de todos os programas possíveis. É, antes, guiado por um vago anseio, por uma ‘Paixão’. Essa paixão dá origem a um comportamento específico que cria as circunstâncias e as idéias para analisar e explicar o processo, para torná-lo ‘racional’.”

Noutras palavras, a transição não se dá de acordo com moldes, mas antes representa a quebra de velhos moldes e a formação de novos. O que vejo é isso acontecendo diante dos nossos olhos, tendo o Zeitgeist como um sinal de um fenômeno.
É precisamente isso que me motivou a escrever novamente sobre esse assunto: porque eu estou vivendo em mim mesmo esse período de transição do Zeitgeist, e eu mesmo fui “despertado” por esse documentário, bem como por pesquisas posteriores, muitas delas motivadas por ele. Eu me sinto, como muitos outros, impelido a me aglomerar sobre esse novo molde e a dar a ele a substância, racionalizar o novo e irracional movimento. Esse novo passo da humanidade.

O domador de mentes no reino das abominações


Nossa pequena vila estava sendo violentamente afetada pelo desmatamento. O novo império se ergueu, e derrubava árvores para suas enormes construções, que não pareciam ter muita utilidade para nós. Os animais fugiram, e os que não fugiram morreram. Não tínhamos muito mel, porque as abelhas não tinham arvores para fazer ninhos, e nosso plantio era constantemente saqueado por membros do império.
Certo dia decidiram que nossa vila deveria deixar de existir. Segundo eles, éramos primitivos e, portanto, estávamos ali envergonhando o império e ocupando um espaço que não era nosso.
Para nós, no entanto, era difícil entender o que diziam. Porque é que nós éramos primitivos? Porque o espaço não era nosso?
O sábio da tribo soube nos responder a segunda pergunta. Para ele, a terra não é nossa e nem de ninguém. Somos nós é que pertencemos à terra, e devemos, por essa razão servi-la.
Eu me convenci de que bastava eu falar disso ao emissário, para o povo dele entender que temos que cuidar da terra, pois ela é a nossa mestra. Quando ele veio, chegou com trinta homens. Eles tinham expressões agressivas, como se estivessem ameaçando suas famílias o tempo inteiro. Tentei apaziguar um deles, mostrando que éramos um povo de paz, mas ele me deu um soco no peito. Ele não sabia falar minha língua. Olhava pra mim como se eu não fosse nada, porque minha roupa era diferente e eu usava brincos.

- Atenção primitivos, viemos aqui comunicar-lhes que já por muito tempo permitimos que vocês usem nossas terras sem pedir-lhes nada em troca. Agora, no entanto, precisamos de força contra um inimigo que pretende desafiar a autoridade máxima de nosso senhor. Eu vejo que há homens fortes aqui. Os que podem lutar devem vir comigo.

O sábio da nossa tribo se pôs a falar, parecendo tão irritado quanto os soldados. Estavam ameaçando a família dele.

- Vocês, filhos da terra, homens de lama como nós, chegaram nesse lugar quando meu avô era ainda criança. Estávamos aqui, de acordo com as leis dos deuses, e vocês as profanaram destruindo os animais, prendendo alguns, e tornando as águas dos rios podres. Somos nós os que toleram sua presença, pois sentimos na nossa vida a miséria causada pela sua falta de sabedoria. O nosso povo é de paz, e, portanto, não lutará.

O homem e seus soldados riram violentamente. Não os entendemos. Quando o homem percebeu que todos nós estávamos com o sábio, puxou sua espada e cortou-lhe a garganta.
Choramos diante do corpo dele, pois era nosso maior guia, tendo nos instruído nos conhecimentos da terra. Foi ele, aliás, que me ensinou a arte de domar as mentes. Ele dizia que sou muito curioso e que, como um xamã, deveria saber como me defender. Dizia ele que eu tenho sabedoria para lidar com a mágica, então todos me prepararam. Ele me salvou da loucura, quando o espírito do mal me atormentava, e me ajudou a ser o mágico que sou hoje.
Na verdade, imagino que os outros passarão a me ver como chefe, embora eu não me considere pronto.

- Seus tolos. Não percebem que esse homem os ilude com bobagens? Não existem deuses e nem espíritos, e a natureza não existe senão para nos servir. Se há deuses, porque não falam conosco, que os afrontamos? Tolos! É só porque vocês acreditam que as palavras desse tolo têm efeito sobre suas mentes!

Todos me olharam. Como eu esperava:  me olharam como quem espera uma resposta. Então fui até ele, engoli o choro e falei.

- Nosso ancião, admirado, não fazia mais do que despertar em nós aquilo que havia em nosso coração. Na verdade, nos mostrou a sagrada terra e o sagrado espírito, os quais encontramos dentro de nós. Nunca nos iludiu. Você, por outro lado, que se imagina como sendo parte do centro de todas as coisas, não percebe como é insignificante diante da Grande Mãe.

O homem me olhou querendo rir, mas percebeu que eu falava sério. No fundo, pelo que percebi, ele conservava em seu coração a crença de que minhas palavras não passavam de brincadeiras. Falou, então, ignorando minha posição.

- Não tenho tempo para seus delírios idiotas. Você é um jovem bem robusto, como alguns outros. Você sabe lutar.
- Posso me defender com lança e flecha, mas minha arte mais refinada é a mágica.
- Um mágico? Temos muitos na nossa cidade!
- Então porque não há mágica correndo pelo seu corpo?
- Truques! São todos truques e nada mais! Eu, na verdade, nunca caio nos truques, mas gosto de rir-me dos tolos que se impressionam com seus truques. Faça um e demonstrarei ao seu povo que você é uma farsa.

Eu mergulhei minhas mãos no chão, tal como nosso velho sábio me havia ensinado, e debaixo da terra encontrei os demônios que aquele homem havia enterrado. É onde todos os demônios escondidos ficam.
Uma imagem terrível, na qual um homem raptou sua mãe e a violou, me foi revelada, enquanto o comandante dos soldados se retorcia no chão, chorando e gritando.

- Servo de Satã! O que você fez comigo? Como você fez essa imagem surgir na minha cabeça? Tire já isso que você colocou! Eu te mato!
- Não sei o que é Satã, e não sou servo de ninguém senão da natureza. Se satã é a natureza, não há sentido e tratá-la com tal tom de voz. O que eu fiz não foi nada de mais. Apenas despertei um de seus muitos demônios e deixei você ver.
- Mas o que são demônios?
- São obscuridades da natureza. Você os esconde para se esconder deles, mas eles estão sempre debaixo do chão que você pisa, na profundidade de um palmo.

O homem pareceu curioso sobre aquilo que eu havia feito. Um brilho nos seus olhos surgiu. Aproximou-se de mim e tocou no meu cajado.

- Sua habilidade é só essa? Desenterrar os demônios?
- Eu sei desenterrar todo o tipo de demônios e anjos, porque homens também enterram anjos. Minha arte, na verdade, é a de conciliar as forças da natureza. No entanto, através do domínio de anjos e demônios, também consigo controlar a mente dos homens que não têm os pés enterrados no chão.
- Então você controla todos os homens que não estão parados com o pé debaixo do chão?
- Não. Os homens que eu controlo são aqueles que voam. Tal como você.
- Então quer dizer que eu sei voar? – gritou o homem gargalhando. – Nesse caso, controle a minha mente!

Eu fechei meus olhos com minhas mãos no chão, e os vermes da terra foram trazidos a mim pelos espíritos aflitos. Falaram a mim da seguinte maneira:

- Ajude-nos, porque vivemos presos dentro desses vermes, escondidos da luz do sol. Você, como iniciado nos mistérios da natureza, deve saber que todos nós devemos ser iluminados pelo sol. Há, no entanto, essa barreira. Se nos ajudar a quebrá-la, te serviremos em teu propósito.

Quando eu abri os olhos, eles olhavam pra mim com sorrisos zombeteiros. Falei ao comandante da seguinte maneira.

- O senhor, que é hábil no uso da espada, poderia me atacar?
- O que, está com vergonha de não poder me controlar? Olhe, tudo bem, eu te dou a dica. Eu não sei voar!
- É o senhor fraco demais para me atacar, fungindo com piadas? – respondi simulando um tom de provocação.

O homem se ofendeu e desceu de seu cavalo. Pegou sua espada e veio na minha direção. Quando ele chegou perto, os vermes entraram em suas botas pesadas. Entraram dentro da sua unha, e seu espírito foi dominado. Anjos e demônios, causando comportamentos aparentemente sem sentido. Mas eu os pude perceber. Um deles era o demônio do medo, que se aliou ao anjo do amor. Assim, o homem passou a ter medo do amor. Outro era o anjo da piedade, que foi dominado pelo demônio da ganância. Assim, ele só tinha piedade dos ricos.
Mas na verdade o espírito mais poderoso era o mensageiro, que ele ignorava completamente. O mensageiro dele era um anjo e também um demônio, porque assim ele era natureza. Tal é a sabedoria dos nossos mensageiros. Mas ele era ignorado, porque a sombra havia tomado seu lugar. O vulto com o qual o comandante se identificou escondeu o mensageiro debaixo da terra, e esse exigia ser ouvido.
Contei a ele o que eu desejei em voz alta, e ele executou no corpo do homem. Facilmente tentado a se aproximar de mim e ingenuamente seguro de si, o homem dançou como uma mulher, com movimentos leves, embora o espírito do medo lhe tenha feito sentir um enorme tormento. Ele dançou, e chegou a ficar na ponta dos pés.
Logo ele foi assistido pelos espíritos que lhe dominavam. Eram o espírito da arrogância e da soberba, guiados pela ganância. Eles lutaram com o mensageiro sem sucesso, até que lhe ordenei que parasse a dança, e ele voltou para debaixo da terra, agradecendo por poder respirar.
O homem, caído no chão, não se ofendeu com aquilo. Pelo contrário se encheu de ambição e curiosidade.

- Você é poderoso! Meu mestre se interessaria por suas habilidades e poderia dar benefícios a você por elas! Venha comigo!
- Não tenho poder algum. O poder é da terra. Não quero benefícios pra mim além daqueles que a terra pode me oferecer.
- São frutos da terra! Você poderia morar no palácio, poderia ter concubinas. Seria autoridade!
- Essas palavras que você usa vêm de espíritos desconectados. Somente espíritos incompletos admiram a posição de comando ou de subordinado. Os homens sábios conhecem a natureza, e sabem que tal coisa não é senão erro humano.
- Podemos ajudar seu povo a ter mais comida. Sabemos que passam aqui fome e sede, porque nossos soldados não lhes protegem a plantação. Você poderia conversar com o nosso mestre, o imperador, e então ajudar seu povo.

As anciãs me olhavam com olhos aflitos, pois seus netos choravam com fome em seus braços. Eles me escolheram como o guia, e era minha função ajudá-los.

- Pois bem. Aceito ir ver seu mestre.

Eu segui a pé e o comandante guiou os soldados. Esses desfizeram a organização quando me aproximei por medo de se aproximarem de mim. Quando percebi isso, me afastei deles e os acompanhei da metade da distância de um lançamento de pedra. Somente assim eles se alinharam e marcharam.
Se perto da minha aldeia havia poucas árvores, por outro lado quando mais eu me afastava, mas escassas elas ficavam, até que num ponto elas desapareceram. Caminhamos por duas horas, até chegarmos na cidade. Havia plantas sendo tratadas por homens magros e fracos. Possuíam dor em seu olhar, e aquilo me deprimiu profundamente. Um deles, percebendo que eu olhava para ele, veio até mim e me falou com sua voz rouca.

- Não teria o senhor algumas moedas para eu alimentar minha família? – disse ele.
- Mas moedas são duras e não podem ser comidas. Porque você quer moedas? – perguntei curioso.

O homem me olhou confuso. Parecia tratar aquilo que eu falava como um quebra cabeça ou um jogo que se faz com crianças para que ganhem esperteza com a linguagem.

- Mas sem as moedas, meu senhor, não posso ter comida. É por moedas que trocamos comida. A água eu busco a uma légua daqui, mas comida eu preciso comprar. Essa terra na qual trabalho não é minha.

- Peço perdão, mas não tenho moedas. Na minha terra não temos moedas.
- Por favor, senhor. Meu filho passa fome!
- Estou entrando na cidade para tratar com o imperador. Falarei com ele sobre sua situação.

Os olhos do homem brilharam, e outros que ali estavam vieram até mim, pedindo também que eu falasse sobre eles ao imperador. Guardei o nome de cada um deles, porque cada um tinha uma família separada do outro, quando um soldado voltou para me buscar. Ele estava assustado ao lidar comigo, mas não hesitou em bater no homem que falava comigo e lhe ordenar que trabalhasse.
Conforme eu me afastava, ele se afastava me seguindo. Quando eu lhe olhava, ele apontava a direção pra onde eu devia ir, tendo o cuidado de se manter distante. Entrei para ele parar de bater no homem faminto.
Naquela cidade eu vi abominações sem tamanho. Animais presos, alguns mortos. Homens gritando todo o tipo de coisas. Uma confusão, todos correndo de uma parte para a outra, como se seus espíritos os levassem com urgência para algum lugar, mas paravam diante de pedras brilhantes e as fitavam. Meu cajado possuía uma dessas pedras, e por causa disso um homem parou para conversar comigo.

- Ei, selvagem! Onde você conseguiu essa vara?
- O mestre sábio a deu a mim quando me iniciou.
- Bem, cá está o sábio que a tomará de você por um preço justo. Cem moedas de prata!

Alguns homens olharam para nós por causa da fala dele, e se amontoaram em volta de nós olhando para o cajado. O homem se orgulhou disso e continuou.

- É isso mesmo que ouviram. Vou comprar esse cajado por cem moedas de prata! E ainda me chamam de avarento por essas bandas!
- Perdoe-me a decepção, mas esse cajado pertence à minha tribo, e através dele que nos conectamos com a mãe natureza a muitas gerações. Ele nos foi mandado pelos deuses.

O homem deu usa risada e me falou.

- Seu cajado foi mandado pelos deuses? Bem, essas moedas que lhe ofereço, são tantas que, por algum tempo te tornarão, você mesmo um deus, e não precisará mais dos deuses.

Num momento sem eu perceber com certeza, um homem me tomou o cajado e correu entre a multidão. Consegui achá-lo e o persegui pela cidade, até que um soldado lhe derrubou e tomou meu cajado dele. Junto comigo, trouxe o homem que gritava chorando a palavra clemência.

Foi quando entramos no palácio.

O que mais me surpreendeu ali foi que homens estavam sentados próximos da entrada, envoltos em panos. Eles pareciam não ter casa. No entanto, dentro daquele palácio, havia muito espaço sobrando e quase ninguém senão guardas e homens com roupas estranhas e perucas.
Dentro do palácio encontrei novamente o comandante, que brigava com o soldado por ter me perdido de vista. Quando entramos, ele foi comunicado sobre o roubo, e sua ira caiu sobre o ladrão, que nunca removia do rosto aquele espanto.
Agarrou-se nos meus pés chorando e me falou da seguinte maneira.

- Perdoe, senhor minhas atitudes. Eu preciso dar comida aos meus filhos! Não quis lhe fazer mal, tampouco acumular riquezas! Eu só queria comida!

Eu chorei. Não era ele o único a padecer de fome em um lugar com tanta comida. Eles possuíam muita comida e bebida. Também possuíam grandes edifícios. Mas os espíritos que ali habitavam eram abomináveis. Nunca eu havia visto um lugar tão profundamente desconectado da Grande Mãe como aquele, onde homens viviam voltados apenas para si mesmos. Todo aquele ambiente me deprimia.

- Não deixe que esse vadio te faça ter compaixão! Temos leis nessa cidade, e ladrões aqui perdem a mão. Esse ladrão perderá a mão, e eu tenho o poder de executar a lei.

O homem estendeu o braço esquerdo e começou a chorar. No entanto, o comandante lhe tomou o braço direito, o que lhe fez chorar ainda mais. Mas ele abaixou a cabeça e não tentou reagir. O sábio, através dos poderes da terra, falou à minha mente como um relâmpago, e, através da pouca força natural que havia no ar, controlei o comandante, que lutou com mais força do que antes contra mim inutilmente. Por causa da força dos espíritos maligno que o controlavam, eu só pude deixá-lo imobilizado. Tive que falar, então, e esperar que somente o poder das palavras ajudasse-o a entender a situação de maneira apropriada.

- Este homem não me ofendeu, e, portanto, não deve receber qualquer punição, seja na consciência ou no corpo. Vocês têm suas regras então lhe declaro que ele me tomou o cajado brincando, da maneira que fazem as crianças, e eu o persegui correndo também como uma criança.

Meu espírito se contorcia por eu ser obrigado a dizer aquilo, mas o homem morreria se eu não o fizesse. Naquele ambiente, os homens que ousassem ser honestos acabavam causando o mal, porque a luz incomoda os olhos de seres que vivem por tanto tempo em abominável escuridão.
Mas minha fala não teve o efeito que desejei. Eles espancaram o homem e o mandaram para fora mal podendo andar, embora com ambos os braços. Soltei o espírito do comandante, que passou a me temer.

- Você é poderoso, mas não aprendeu a usar seus poderes. Você não pode ter piedade dos homens miseráveis, pois eles lhe sugarão cada moeda que possuir. Deve ter piedade apenas dos homens ricos e dos poderosos, pois esses, pelo contrário, lhe recompensarão por sua piedade.
- Mas todos os homens, ricos ou pobres, são filhos da terra e a todos foi concedido um mensageiro do outro mundo.
- Bárbaro, bárbaro... Quanto ainda não temos a te ensinar? Verá que a vida não é bem como explicam seus contos.

Não entendi bem o que ele quis dizer, e sentia em meu coração que não poderia aprender nada ali, pois quanto mais eu me adentrava no lugar, mais abominável ele se tornava. O chão era coberto por pele de animais misturada com pelo. Enfeites coloridos haviam sido feitos com as árvores, profanando as leis da grande mãe. Quase nada naquele lugar era necessário, e, no entanto, os homens tomavam todo o cuidado com cada detalhe, como se fossem de extrema urgência. Havia armaduras que seguravam armas. Havia escuridão dentro delas, e ma causavam calafrios. Como se desvirtuavam os homens da grande mãe usando tais vestes! Só podiam ser amaldiçoadas.
Eu constatei quais eram as falhas daquele reino, e ainda tinha em minha memória o nomes dos homens que passavam fome com suas famílias. Achei estranho que o sábio dali não percebesse o ambiente opressor que o envolvia, mas pretendi dar-lhe a mensagem, pois a isso me orientava o sábio da aldeia, falando em meu coração. Ele se tornou meu espírito protetor, como o outro que me protegia antes de ele morrer. O espírito de um ancestral que conhecemos é mais poderoso do que um ancestral mais antigo, porque há um laço de espírito e de matéria. Isso eu descobri ao sentir com que nitidez ele falava ao meu coração, trazendo pensamentos inteiros como relâmpago à minha mente.
Entrei numa sala enorme e vazia, no fim da qual estava sentado um ancião. Havia na cabeça dele uma tiara brilhante. Tinha a cor das moedas. Na verdade parecia com as moedas moldadas como folhas de uma tiara. Ele comia a carne de uma ave, até que mordeu algo que não gostou, ao que derrubou toda a comida.

- Quem foi o maldito que colocou tanto sal na minha comida? Já não basta o sal que perco com seus roubos, ainda preciso desperdiçar sal assim na comida e torná-la intragável! Seus vermes!

O homem gritava enquanto os outros pareciam reagir com um misto de medo e tristeza. Decidi reagir

- Não percebe o senhor, como o guia dessas pessoas, que faz mal ao espírito delas com tal repreensão? Não seria melhor que as ensinasse, cozinhando você mesmo, a maneira correta de preparar o alimento?
- O que esse selvagem faz no meu palácio?! – gritou o homem. – Quem foi que lhe concedeu o direito de falar, seu indigno!?

O comandante que me acompanhava se ajoelhou e fez um som com a garganta como o de quem está doente, mas ele estava com o corpo são. Diante disso, o guia lhe falou.

- O que é isso, comandante? Procura levantar minha ira trazendo um selvagem maltrapilho para meu palácio?
- Senhor, se me conceder a honra de demonstrar o que esse selvagem faz, perceberá que seu poder sobre o inimigo será infalível. Ele tem o poder de controlar os homens, é um feiticeiro.
- O que você fala para mim no meu período de comer? Logo o senhor, que possui a cabeça clara e sóbria, vem me importunar com crendices?
- Não te importunaria se não tivesse visto eu mesmo a prova, e trouxe-o para mostrar-lhe como ele faz.

Naquele momento ele mandou trazer um aldeão. Ele trabalhava na lavoura e também era cozinheiro. O rei o detestava em especial, e embora a comida estivesse mais saborosa do que nunca, reclamava contra o homem.

- Mostre-me, então, como ele controla os homens. – disse o guia daquela cidade
- Para fazer com que nosso mestre te ouça, você precisa primeiro mostrar suas habilidades a ele.
- Não são habilidades. No entanto, se é assim que ele me ouvirá, a demonstrarei.
- Sim, mas não sobre mim, mas sobre aquele aldeão.

Trouxeram o homem para diante de mim e o colocaram de joelho. Afundei minha mão na terra que o comandante me trouxe dentro de um vaso. A terra serviu, e nela só encontrei um verme. Ele me falou da seguinte maneira.

- Como você deve saber, eu sou o orgulho. Mas não se engane sobre eu estar escondido na terra, porque não é sempre que estou aqui. Na verdade, estou aqui por vontade própria, pois eu sou um grande aliado do espírito da honra.

Fiquei muito contente e perplexo, vendo que aquele homem possuía um espírito muito valoroso dentro de si. Na verdade, o que eu senti é que ele devia ser o guia do lugar. Possuía contato com a natureza, que puder ver nos espíritos que habitavam seus pulmões, e também com os deuses. Pulsava dentro dele um sentimento de equilíbrio tão grande que ele passava pela punição de ser ajoelhado diante de mim sem quase nenhuma impressão negativa.

- Não posso controlar esse homem, pois seu espírito está em harmonia. Se quiserem que eu demonstre, posso fazê-lo no seu guia, dando a ele revelações de que ele precisa.

O comandante dos soldados tentou me impedir, mas o rei ficou curioso. Ordenou que o soldado me permitisse tentar controlá-lo. Arregaçou as mangas de seu manto colorido e andou até a minha direção, com o corpo ereto e o peito estufado, como ficam os jovens sem sabedoria quando querem se impor.
E quando eu olhei para o que estava escondido, percebi, para a minha surpresa, que não era senão um pequeno espírito, daqueles que recebem atenção na aldeia por serem os mais insensatos. Na verdade, a imagem da alma dele era a de uma criança que não recebeu os devidos limites dos pais. Seu espírito guia tinha a forma de um menino.
Quando o libertei, o espírito guia tomou o controle do guia, e ele começou a fazer travessuras com os soldados. Puxou um deles pelo capacete, jogou comida em mim, e até rolou pelo chão.
Aquele espírito não era o de um guia, então imaginei que estavam apenas testando minha sabedoria com tudo aquilo. Por isso, falei da seguinte maneira.

- Já entendi que esse homem não é o seu guia. Mostrem a mim aquele que é seu verdadeiro velho sábio para que eu possa tratar com ele sobre os problemas da cidade e sobre como estão lidando com a natureza sem o consentimento dele.

O velho, ao ouvir aquilo, se ofendeu profundamente e ordenou que me expulsassem do palácio, ignorando as recomendações do comandante sobre meu potencial. Pelo que percebi, ele gostou de  fazer tais travessuras, mas me detestou, e percebi que realmente era ele quem guiava aquelas pessoas. Não pude falar a ele sobre os que sofriam com fome e fui deixado à própria sorte na entrada do palácio, onde o ladrão me encontrou. Beijou os meus pés, o que me incomodou, então dei um passo para trás e estendi a mão para ele se levantar, ao que ele a segurou um tanto confuso.

- Você não aceita meu agradecimento? – perguntou ele
- Eu não fiz nada de bom que mereça agradecimentos. Na verdade eu menti e não aceito ser glorificado por isso. Eu queria solicitar ao guia dessa cidade que ele ajudasse os homens necessitados, mas ele é um tolo e me ignorou.

O homem bateu no peito três vezes com os olhos cheios de lágrima.

- Te seguirei até a morte. Você é um homem santo!
- Se me seguires até a morte, teu espírito será atormentado. No entanto, se seguires a ti mesmo, então seu espírito lhe mostrará o caminho.

O homem pareceu não me entender, e não me surpreendi, já que ele foi criado naquele meio abominável. Ele me seguiu até a saída da cidade, onde me esperavam os homens famintos. Quando os vi, ansiosos em seus corações por comida, meu coração foi comprimido pelos meus sentimentos. Tamanha foi a minha dor por aqueles homens que chorei ao vê-los, e diante do meu choro eles abaixaram a cabeça. Fui até eles e o homem que me seguia começou a falar.

- Esse homem disse que o mestre é um tolo! Ele é um santo e salvou a minha vida mesmo depois de eu tentar roubar seu cajado!

Os homens me rodearam e logo me levaram a uma pequena casa, na qual quatro crianças estavam fazendo alguns serviços. Lá, ordenaram que me trouxessem comida.
Por uma hora, falei a eles sobre meu lar, e me explicaram que havia maneira de impedir o roubo das colheitas. Ficaram, acima de tudo, maravilhados ao ouvir sobre a Grande mãe, e desejaram em seus corações poder vir comigo, mas não havia, na aldeia, os recursos para dar a eles o que comer.
Imerso em mim mesmo, encontrei-me com o velho sábio, que me falou, rápido como o relâmpago, da seguinte maneira.

- Venda agora o seu cajado para quem o comprar, e compre com o dinheiro toda a comida que puder. Começa agora um novo período na vida, com terríveis lutas e provações para todos os homens. Leve consigo esses homens e toda a comida que puder. Será através do coração de cada homem que ele se conectará com a terra e com os deuses dos céus.

Quando declarei que venderia o cajado, o homem que me seguia se revoltou.

- Você não pode vender o cajado! Ele é da sua tribo! Não faça isso!
- Entenda, homem, que me foi revelado que um novo período chegou, no qual o cajado não poderá nos conectar com a terra, mas apenas o nosso coração. Imagino que com as cem moedas de prata que me foram prometidas, poderei conseguir comida e levar todos vocês comigo para minha aldeia. Fica próxima, logo atrás daquela colina, cercada pelo que sobrou das florestas. Com sementes poderemos plantar e ali vocês poderão fazer parte da família e conhecer a Grande Mãe.

- Entendo que você fale com seu coração. Tenho a acrescentar que a pedra desse cajado vale muito mais do que cem moedas e que há ainda um homem que deve vir conosco. Venderei o cajado, com sua permissão, e trarei os recursos. Sementes e comida. Trarei também lanças de aço para defendermos a lavoura. Comprarei tudo o que eu puder e iremos embora, mas com um homem de valor que não merece viver nesse lugar.

O homem saiu, com espíritos poderosos o guiando. Senti em meu coração que era muito grande a quantidade de força que seu espírito possuía, e que eu fui capaz de despertar nele aquilo que era dele mesmo. Ele, na verdade, não seguia a mim, mas àquilo que descobriu sobre si mesmo e atribuiu a mim. Seria simples demonstrar isso a ele quando ele estivesse na aldeia, e fosse iniciado nos mistérios da Grande Mãe.
Continuei falando aos homens, que ouviam e gravavam cada palavra que eu pronunciava. As mulheres deles me serviam praticamente tudo o que tinham, cheia de esperanças. Apenas uma permaneceu descrente e não gostou de mim, mas não se separou dos outros.

Quando voltou, o homem trazia consigo dois burros com sementes e comida, além do cozinheiro do palácio. Quando o cozinheiro chegou diante de mim, recebi a mensagem do Velho sábio, a qual transmiti diretamente, quase sem consciência do que eu falava.

- Não poderemos levar esse homem.
- Mas por quê?
- Ele é um guia mais sábio e poderoso do que eu, e é a luz desse lugar. Não possuo sabedoria para guiá-lo, e seu espírito é de tal forma iluminado pelos deuses dos céus e pela Grande Mãe que, mesmo vivendo na terra das abominações, conseguiu alcançar sabedoria. Os homens que não vierem conosco precisam dele para que os ilumine e guie.

O cozinheiro, então, se pronunciou.

- Você atribui a mim maior valor do que possuo. É fato e sei do fundo do coração que você ainda é jovem e precisa aprender com a vida, mas não sou maior do que você. Apenas tive mais tempo e despertei meu espírito do sono em que ele foi trazido ao mundo. Contudo, sobre eu ficar aqui, lhe digo que isso sim é mensagem dos espíritos, pois me dizem a mesma coisa. É meu dever ficar aqui, e logo serei morto por isso, mas ficarei. Por aqui, sou dos poucos que ouvem os espíritos, e sem mim os homens mergulharão no abismo, dominados pelas trevas sem terem a quem recorrer.
- Entendo. Eu não conheço o que é meu potencial, se sou poderoso ou se não sou. O que te falei não fui eu quem disse, mas o Velho Sábio da minha tribo. Pode ser que no futuro eu seja capaz de ter sabedoria igual à tua, mas preciso ainda viver com a terra e na terra, como você disse. Eu falava, no entanto, sobre o presente momento, no qual não possuo sabedoria para lhe guiar, tampouco para poder entender aquilo que você precisa. – respondi.
- Você é um bom jovem. Estamos entendidos. Levem consigo ainda esses instrumentos para lavrar a terra que construí. Funcionam melhor do que esses que compraram. Os preparei justamente para isso.

Meu coração se encheu de admiração por aquele homem e por ele conseguir alcançar a sabedoria sem cajado e sem ser iniciado numa aldeia. Repetia-se na minha mente aquilo que o velho me disse. Que agora é com o coração que nos ligamos com os deuses e com a grande mãe. O cozinheiro já sabia disso, e já vivia assim. Precisei vir até a terra das abominações, onde ele aprendeu isso, para também aprender. Nenhuma parte do meu tormento ali foi em vão, mas foi planejada pelos deuses.

Seguimos para a aldeia, e todos nos olhavam enquanto partíamos. O rumor havia corrido entre os soldados sobre eu ter poderes para controlar os homens, e eles me temiam, motivo pelo qual não tentaram nos impedir. Mas vi em meu coração que aquilo era só o começo, e que o guia tolo ainda iria querer nos afligir.
Um dia eu terei que voltar, e quem sabe ajude o cozinheiro ou outro guia de verdade a se tornar o verdadeiro e legitmo sábio daquela cidade. Por agora, no entanto, não possuo sabedoria para isso, e me reservo a viver em harmonia com a natureza, ouvindo o que ela quiser me dizer para me preparar, pois, apesar de eu não o entender bem, parece que ainda há propósitos a serem realizados.

- E foi assim a minha aventura pelo reino das abominações, onde me viam como domador de mentes, quando na verdade o que eu quero é libertá-las. Fiquem atentos, meus irmãos, e aceitem entre nós os novos e os ensinem sobre os caminhos da natureza.

Naquela noite aconteceu uma festa, e todos dançaram e se alegraram com os novos membros da família. Passaram a trabalhar conosco e nos ensinaram técnicas para a construção de nossas casas, para a nossa plantação e também para a nossa defesa, o que, percebi na viagem, se tornou de grande importância. Um novo período começou. E espero ter sabedoria para viver nele...

Sim, a carta é pra você

Já faz tempo que não te escrevo, não? Nem sei quem você é!
Eu fui lá fora. Quero dizer, fui arrastado pra lá. Descobri que por lá as coisas não são como eu imaginava. Há todo um mundo onírico, sabe? Demasiadamente idealizado. Lá, onde o sol se recusa a bater, há homens com honra, e outros sem. Onde eu fui quem morre primeiro é quem não merece. Quem merece também morre. Às vezes cedo, as vezes não.
Lá fora são curvas que governam o mundo, sabe? As curvas do corpo de uma mulher, as que tomamos na vida. O problema de uma jornada repleta de curvas é que você nunca sabe onde vai chegar. Você olha e imagina, mas no fundo não sabe de nada. É tudo imaginação. Alguns têm a sorte de descobrir a tragédia apenas tardiamente, mas outros a descobrem cedo.
Descobri.
Não, a vida de um homem não vale tanto na vida real quanto no nosso mundo imaginário. Na vida real, um homem é um número. Alguns, os gananciosos, são números com muitos zeros.
Eu sei o que você vai me dizer. Que homens possuem almas. Mas de que adianta se eles vivem num mundo que exige que sua alma nunca venha à tona? Esses homens morrem cedo, lad. Morrem tão cedo que na maioria das vezes nunca entendem o que pode ser a alma. E quando entendem, perdem a consciência.
O máximo que podem aprender é a ter honra. A respeitar uma lei, aceitar algo acima de suas cabeças. Eles vivem em mundos separados, cada um no seu jardim...
A carta é pra você, mas não é sobre você e nem sobre mim. Ela é sobre a vida. Sobre se sentir vivo e perceber que isso em breve será sentir a vida ir embora.
Eu posso sair amanhã ou na quarta, e, nalgum desses dias, um daqueles metais voadores pode perfurar meu crânio, um carro pode me lançar a alguns metros de distância. Você sabe que tudo isso é muito efêmero.
Nós falamos muito sobre o mundo metafísico e até mesmo sobre o mundo psicológico.  Exploramos juntos o poder que um homem pode ter sobre a mente e sobre o corpo do outro.
Mas vamos encarar a verdade: a realidade desse mundo nos torna impotentes. Não somos mais espíritos. Todo o poder de um homem astuto se vai quando ele leva um tiro na cabeça.
Sejamos sensatos: tudo isso é muito maior do que imaginamos. É muito maior do que poderíamos imaginar.
Eles me disseram que a cada dia minha fé seria testada. Esqueci de avisar que eu não tinha fé.
Agora o que eu sei é que uma bala pode ser mais rápida que um pensamento. Agora eu tenho fé no fato de que a morte é certa, mas a vida não.
Eu vou construir idéias que serão capazes de curar a mente de homens. Já construíram isso, e conforme o tempo passa, nós chegamos aqui pra reconstruir, readaptar à nova época.
Mas dessa vez tem algo a mais. Eu não vim mostrar isso. A cura, uma cura. Meu espírito me carrega por terrenos sombrios. Cada vez mais podres são os caminhos para os quais sou levado, e é cada vez mais perigoso e sem volta o meu destino. Será que sou mesmo um mensageiro da morte?
Eu tenho ainda um lugar entre os anjos, lad? Lembram de mim por aí? Avise-os que talvez eu tenha ficado tempo demais na terra dos demônios. Nunca poderei ser um deles, mas perdi o brilho dos meus olhos. Eu não posso mais voar, bem aventurado pelos céus do universo. Não posso mais. As minhas lágrimas secaram.
Nem sei o que estou escrevendo. Você existe mesmo? Quem é você, quem sou eu, quem somos nós?
Essa carta é sobre a minha morte. Isso mesmo. Sei que não acreditamos na morte do corpo, e que concordamos sobre a nossa alma se conservar por um tempo tão longo que nos arriscamos a chamá-lo de eternidade, por ser tão longo que não o entendemos. Mas eu hoje morri. E não precisa guardar a data, porque tempo não existe. Amanhã devo nascer de novo, com as marcas das feridas pelo meu corpo. Então viverei mais um pouco e serei assassinado mais uma vez. Ser assassinado nesse mundo é um destino do qual poucos podem se livrar.
Porque enquanto o pedaço de metal voador perfura a cabeça de um homem, seja ele quem for, ele também atinge a minha alma, e ela se torna mais dura, mais ferida.
Alguém morreu hoje, e o que eu vou fazer?
Morrer também!
E continuar morrendo enquanto os pedaços de metal continuarem a matar os homens. Acho que vou morrer tanto, que me tornarei imortal. E aí a morte dos homens se tornará tão comum, que nem aos milhares, ao milhões, poderá me comover. Quando e se esse dia chegar, deixe de esperar minhas cartas. Estarei ocupado demais existindo como uma rocha. Só a chuva poderá me corroer, e me transformar em pequenos pedaços. Aí, esses pequenos pedaços entrarão novamente no ciclo de todas as coisas.
Sim, lad. A carta é pra você. É pra todos e pra ninguém...