Of mice and men


Eu fui jogado no esgoto
Cheiro forte, luz fraca
Minha cabeça girando
Meus olhos queimando

O meu corpo falhava
Meu sangue fervia
Uma fumaça negra me rodeava
Fecharam o bueiro

Dentro da escuridão
Meus olhos se acostumaram
Vi luz onde não esperava
Vi muitos ratos

Pensei que iriam me devorar
Não imaginava o que eles comem
Eles me rodearam
Cheios de interesse

Fechei os olhos
Os senti tocando me tocando
Em volta de mim
Nenhum subiu em cima

Ouvi o som de uma queda d’água
Se tornava mais intenso
Até que caí, abri os olhos
Água salgada, ardeu...

Dois ratos caíram comigo
Os levei até a areia, e sumiram
Nem me dei conta do horário
Era manhã, e o sol nunca esteve tão lindo...

Recebi amor de ratos
E não de homens
Os pequenos e indefesos
Salvaram meu espírito...

Porque vivo em esgotos
Sou chamado de louco
Mas os grandes homens
Têm cheiro pior...

A fome


Eu abri a dispensa de casa. Cheia de coisas que me dão asco. Eu não queria comer nada daquilo, embora estivesse cheia. Um biscoito lacrado estava atraindo formigas. Mas aquilo não tinha como me tirar minha fome. Saí de casa andando sem rumo. Eu tinha rumo definido, mas não na mente. Em outro lugar. No inferno, talvez.
Fui selecionando esquinas aparentemente de maneira aleatória. Eu só olhava pro chão, com minha respiração acelerada e minhas mandíbulas rígidas. Minha boca cheia de água: eu estava com fome.
Quando dei conta de mim, estava na frente daquele santuário da perdição. B&K empreendimentos. Uma empresa de contabilidade sem nem uma máquina de vender refrigerante. Entrei assim mesmo.
Nove e meia da noite, o guarda veio me avisar que eu não poderia entrar, ao que tirei uma faca de algum lugar e cortei sua garganta. Continuei andando meio inconsciente, cheguei a pensar de onde tirei a faca. Devo ter pegado em casa e nem vi. O sangue do guarda escorria pelo chão. Eu assisti enquanto esperava o elevador. Bati o pé no chão num ritmo meio acelerado, quase compulsivo.
Subi até o nono andar, eu sabia exatamente onde estava indo. Não havia como esquecer. Foi ali que ele despertou, ou que eu despertei. Não sei, mas ali que tudo despertou. Eu lambi a faca. Detesto gosto de sangue. Tem vida demais...
Aquele lugar era cheio de divisões falsas. Originalmente era um grande salão, mas depois foi dividido e a maioria ficou comprimida num canto pro chefe pode jogar golfe. Só pra ele jogar golfe! Isso enquanto eu desfazia as merdas que ele faz.
Mas não estou enganando você e nem a mim mesmo. Não é porque ele me difamou que estou aqui. Não é porque perdi meu cargo por ele. Eu não ganhava nada por isso, só a empresa. A razão de eu estar aqui é por causa da minha fome que nunca está saciada. Uma fome que me trás sofrimento, desgosto, delírio, agitação, morte. As portas do porão da minha alma foram abertas.
Passei a faca no rosto. O outro lado ainda tinha sangue. Lá estava ele. Tinha uma mulher de lingerie. Gostosa, ela. A secretária dele. Estava chupando o pau dele, enquanto ele segurava um bolo de dinheiro olhando pra cima. Eu sempre fui sorrateiro, nem me viram chegando.
Meu corpo começou a se agitar. Se preparando pro combate, como um primitivo pedindo o auxílio dos deuses. Minha cabeça se contorcendo, tudo girou por uns instantes. Fiquei nervoso, calmo, ansioso, receoso.
Na hora nem vi nada. Quando me dei conta a mulher já estava com a faca atravessada na garganda se debatendo no chão e eu estava derrubando o maldito na mesa de vidro. O som foi delicioso. Quebrou com a cabeça careca do filho da puta. Ele segurou no meu terno com os olhos fechado e eu mordi o pulso dele com toda a força. Ele gritou e me soltou.
Pegou um pedaço pontudo de vidro e apontou pra mim, com um olhar de desespero. Covarde.
Peguei a faca do pescoço da mulher e enfiei o dedo na boca dela. Achei que isso iria perturbar o sujeito, mas ele não mudou a expressão. Ele não dava a mínima pra vadia.
Levantei com a faca, meus joelhos meio dobrados. Percebi que estava com uma bota grossa, como coturno ou algo assim. Ele, por outro lado, estava descalço, pisando no vidro com dificuldade.

- Quem é você? Olha, seja quem for que te mandou, eu pago mais. – gritou ele

Nesse momento eu percebi que uma toca cobria meu rosto e só o olho ficava amostra. Quando foi que coloquei isso na cabeça eu não sei.
Lembrei de alterar minha voz, que, por algum motivo, já estava naturalmente mais grave do que o normal.

- Você vai pagar com sangue.
- Caralho, te dou um milhão de reais!

Eu girei e dei um chute no ombro dele, ao que ele caiu no chão e derrubou seu caco de vidro. Se arrastou até a janela e eu subi em cima  dele. Deixei a faca na garganta dele e fiquei olhando a cidade. Carros andando, algumas janelas acesas noutros prédios. Ninguém se importava com aquilo.

- Porque você está fazendo isso? – perguntou ele
- Não sei e não me importo em descobrir.
- Quem te mandou
- O diabo.

Saí de cima dele e ele se levantou. Andei calmamente pelo lugar e ele ficou parado no mesmo lugar. Olhava pro telefone, então corri e enfiei uma faca na barriga dele. A janela estava aberta e o sangue escorria pra fora. Empurrei-o pra fora e ele se segurou na minha mão. Um desespero naqueles olhos negros, naquela cara de idiota. Mergulhei pela janela com ele e chutei a cara dele antes de me segurar numa corda. Não senti minha mão doer enquanto escorregava devido à velocidade em que já estava, e foi aí que vi que usava uma luva legra de couro. Eu nem lembro de ter essa luva. Meu corpo estava todo numa roupa preta de couro que eu não reconheço. Aquela corda eu me lembro de tê-la visto de manhã. O sujeito estava limpando o vidro e ela ficou pendurada. Não sei se ele esqueceu ali ou se era pra ficar mesmo, mas estava bem na janela dele. Lembro de ter feito essa estimativa quando saí à tarde...
Desci até o segundo andar, onde a corda acabou e eu soltei. Caí em cima dele e isso espirrou sangue da boca dele. Sexta feita à noite, o lugar deserto. Ninguém viu o cadáver.
Sentei ali e acendi um cigarro. Eu não sabia que tinha, tampouco que eu fumava. Detestei, tossi, mas fumei tudo. Não sei porque.
Ele ficava tremendo, então fiquei, de alguma maneira, irado e comecei a esfaquear a barriga gorda dele. Nem sei quantas vezes enfiei a faca nele. Só parei quando perdi o fôlego. Depois eu só fiquei arrastando a faca, cortando sem furar. Quando me senti satisfeito, vomitei num bueiro. Nem meu vômito eu deixei no chão. Tirei um saco preto de lixo do meu bolso e comecei a tirar minha roupa. Havia outra por baixo, como se tudo tivesse sido meticulosamente planejado. Nenhuma gota de sangue na parte de baixo.
Coloquei a faca dentro do casaco. Tinha uma caveira na parte de trás dele. Que pena que tive que destruir. Fui até aquela baia podre, cheia de lixo boiando. Não vão acreditar se eu disse, mas tinha uma garrafa de álcool intacta escondida lá. Acho que fui eu quem a deixou ali.
Queimei tudo, mas ainda sobrou algo. Isso eu coloquei dentro de outra sacola, com várias pedras. Daí joguei na água e afundou.
Não sei o que estão pensando, nem o que estão sentindo. Mas eu não pensava nada e me sentia tranqüilo. Não vou mentir não. Foi bom, libertador. Sentei na beira daquela água com cheiro de merda, depois dentei perto daquela pilastra com cheiro de mijo. Foi o momento mais tranqüilo que tive em meses...
Matei minha fome...