O tormento do pecador


“Não existe certo ou errado”, dizia ele se revirando pela cama. “eu não tive escolha. Quem faria diferente?”
Mas a sua cabeça queimava. Como se linha de fogo a estivesse atravessando. Para um habitante daquele lugar, que é destituído de consciência, ele poderia encontrar justificativa. Mas para si, jamais.
O corpo estava ali. Todas as evidências foram devidamente removidas, mas ele nem se importava muito com ser pego. Só não se entregava definitivamente porque poderia causar o mal a pessoas inocentes. Aliás, não são inocentes porra nenhuma, mas são amadas. São humanas, carnais e fracas. Mas amadas.
Logo ele, aquele que pregava o amor ao próximo. Aquele que, naquela mesma noite, havia experimentado a sensação boa decorrente do amor genuíno. Logo ele cometeu tamanho crime.

- Eu só estava me defendendo. – disse pra si mesmo
- Mas eu poderia ter evitado todo o conflito. – respondeu
- Mas as circunstâncias foram adversas!
- Covarde. Sabe que era você o testado. Foi você quem falhou em demonstrar amor. Foi você que traiu a Deus e ao amor do universo. Quer culpar as circunstâncias?

Ele se deitou ao lado dos sacos. Todos bem embalados. Um crime tão limpo. Ele viu tudo acontecendo dias antes. Conversou com uma amiga, que o aconselhou a mudar o rumo da coisa. Naquela noite, antes de fazer o que fez, ele estava convicto e decidido a não fazer. Mas fez.
Ninguém saberia, ninguém sentiria falta. No dia seguinte, a vida de todos seguiria como sempre. Mas não a dele. Ele caiu da posição de amante do mundo. Ele possuía uma aura de amor, que o protegia de todo o ódio do mundo. Depois de fazer o que fez, o amor o abandonou. E a culpa o corroeu e o tornou fraco.
Sua própria força mental, que já não podia defendê-lo, estava partida em pequenos pedaços. Menores do que os fragmentos esquartejados e embrulhados em meio aos quais ele se deitava.
Nada que ele pensasse aliviava seu sofrimento. A TV o aborrecia. Felizmente não há pessoa falando na madrugada.

- Nenhum crime sai impune. – disse ele – ninguém abandona os caminhos do amor para se entregar à bestialidade e fica impune. O peso dos milênios queima a minha alma. Logo eu, que deveria ser um exemplo!

A morte teria que ser limpa e rápida. Ele pensava em como faria. Sem barulho, talvez sem dor.
Um fantasma apareceu ali naquela cozinha e falou-lhe.

- Você ainda pode se redimir. Você abandonou o amor, mas pode reencontrá-lo. Caia, se desejar a mudança, de joelhos no chão e peça perdão a si mesmo.
- Que perdão? Depois do que eu fiz? Eu não sou hipócrita! Eu não mereço qualquer perdão!
- Se desistir da sua missão por causa desse desvio, sofrerá por muito mais tempo e com muito maior intensidade. Não espere que tal evento saia impune. Aquele espírito que lhe foi prometido, o qual te daria forças nos momentos mais difíceis, não mais o acompanhará. Com o seu crime você foi condenado, até segunda ordem, a cumprir sua missão sozinho.

O fantasma saiu e ele chorou. Era tão cara a pessoa que ele perdeu. Tão próxima. Terrível era o fato de que ele se revelara um monstro indigno de tal companhia. As lágrimas distorceram sua visão.
O despertador tocou. Era a hora de se livrar do corpo e encarar um mundo que, a cada dia, se revelava mais amigável. Teria que se torturar com a admiração que algum tinham por ele e ouvir calado (embora atormentado), que pessoas estavam orgulhosas dele. Que ele era um herói, e que com sua luta pelo amor ele mudaria ao menos um pequeno fragmento do mundo.
Mas, diferente do que diziam, ele sabia que não era anjo. Ele sabia que, no fundo, era uma peste. Ele pecou, e sua maior punição foi que ninguém o odiou por isso.

Sua maior punição foi ter fama por algo que não merecia.

Afinal, de que valem todos os seus trabalhos e todos os seus esforços se, quando provado, ele sucumbiu à mais selvagem, embora atraente, vontade de destruir?
Não. Um anjo não sorriria enquanto apunhala uma criatura pelas costas. Por mais que ela seja desprezível.

- São os malditos e os desprezíveis que mais precisam de amor. – repetia ele em voz baixa.

Colocou os sacos no porta-malas e saiu de casa. Espalhou os pequenos sacos bem embrulhados e lacrados por lixeiras distantes da casa dele e distantes uma da outra. Viu o sol nascer. Ele tornou aquele dia um pouco mais podre para todo o mundo. Espalhou seu aroma fétido por diversos cantos.
O vidro estava aberto, mas ele mal podia respirar. Chorou quando o rádio ligou e tocou uma música. “ficar sem você, é como tentar viver sem respirar”.
Ele queria nunca ter existido. Morrer naquele momento não era o bastante. Havia pessoas que contavam com ele e eram todas caras. A única pessoa com a qual ele poderia compartilhar tal evento provavelmente cortaria relações com ele. Mas pra quê compartilhar esse lixo?
O mínimo que ele poderia fazer era aceitar o tormento merecido.


Nenhum crime sai impune

Acerca do deplorável papel de substituto do “homem ideal”


A mim parece que a lógica dos relacionamentos está tão completamente alheia aos esquemas racionais do senso comum que toda essa compreensão não passa de uma grande farsa.

Todas as mulheres falam sobre o que queriam nos homens. Usando muitas palavras ou poucas, no fundo tudo se resume a atenção e interesse genuíno: com isso, ele ouvirá, será carinhoso e todos os outros detalhes espontaneamente sem nenhum esforço racional.

Noutras palavras, as mulheres querem ser amadas. E é aí que o engodo começa.

O que se vê na prática é completamente diferente disso: de um modo geral, tudo o que a mulher faz é ter fé num ideal que nunca existiu. A atenção espontânea não lhes é dada, mas têm esperança de que isso venha mais cedo ou mais tarde. Mas nunca vem. Mesmo se o homem se esforçar, aquilo que não é espontâneo e natural não pode ser criado por uma mera decisão.

Então entra o substituto. Aquele que vai se entregar e que tem exatamente o que a mulher quer (ou diz querer). Ele possui precisamente o que o companheiro precisaria para ser perfeito, mas não é o companheiro. Conversa com ela, ouve, entende e se importa de forma genuína. Não raro, conhecendo-a profundamente, a ama profundamente. Mas nunca deixa a posição humilhante de substituto.

O substituto devolve a alegria subtraída pelo companheiro, que pode acabar virando um corno. Nem sempre, no entanto.

Por algum motivo, a mulher continua perdidamente apaixonada pelo homem que não é responsável por um pingo de sua alegria. Ela o ama profundamente, tem fé no que ele pode ser e não perde as esperanças. Enquanto que o segundo, o substituto, já é o que o outro poderia ser. Mas o segundo não é um protagonista. Não passa de uma muleta que a sustentará enquanto o potencial do personagem principal não aflorar.

Jamais pode o substituto ser amado, precisamente porque quando ele chegou o amor já existia, e ele nunca poderia ultrapassar o patamar de amigo. A mulher preferiria, aliás, que ele fosse gay.

O homem que desempenha tal papel deplorável jamais espera qualquer coisa em troca, mas no fundo quer. Uma espécie de drama, no qual há um desejo que ele não aceita. Afinal, como “o homem ideal” poderia admitir que, mesmo por um segundo, se dedicou completamente a alguém por interesse próprio?

Não. O homem ideal tem que ser santo. Ele tem que se entregar de corpo e alma sem esperar nada em troca e se sentir feliz com ele. Tem que aquecer a mulher em suas noites frias e passar as suas próprias imaginando como ela deve estar naquele exato momento com o protagonista. Porque ele é o dublê. É só ele que consegue agüentar todos os momentos ruins.

Sua raiva existe, e vai aumentando na medida em que sua presença vai deixando de ser necessária. Quando, nas conversas com a mulher, ele consegue encontrar uma maneira de ajudá-la em seu próprio relacionamento, o que, progressivamente, o torna obsoleto. Num momento ele não suporta mais sua posição deplorável, e toda a sua dedicação cai por terra. Um castelo destruído pela erosão constante. Ele se torna como uma muleta diante da perna recuperada. Como um remédio antidepressivo diante do paciente recuperado e feliz. Perde a utilidade, e conseqüentemente o valor.

Aí tudo explode num pequeno instante.

Então ele se torna o vilão, o psicopata, do qual ninguém esperava tal crueldade. Tudo porque não quis mais se sacrificar não ter nada em troca. Porque pensou que a relação poderia ser recíproca.

Mas destino é destino, e o substituto sempre acaba na mesma situação.

Aparecerá mais uma carente justamente daquilo que ele quer doar. E será bom fazê-lo até chegar o ponto em que ele se tornar obsoleto e for descartado novamente. Um algoz de si mesmo sendo tratado como um algoz das mulheres que ele tanto ama.

Onde estão os homens ideais?

Estão num lugar onde jamais poderão ser mais do que substitutos. Porque mulher nenhuma quer mesmo o homem ideal.

Um passo em direção ao fim dos dias



Entrei no quarto angustiado. Imaginei que a profundidade psicológica de Jane Austen pudesse ao menos me distrair. Estava errado.
Pelo contrário: ela conseguiu, justamente com os capítulos que li, reavivar meu tormento.
Eu sabia que naquele dia um passo foi dado numa direção terrível. Como um bandido que vê uma bala quase penetrar-lhe o crânio e de repente toma consciência de que mais cedo ou mais tarde uma delas o destruirá. Tudo porque eu coloquei a cabeça na luz! Eu coloquei o coração na luz!
Que erro maior?
A música que ouvi praticamente o dia inteiro sem entender bem porque de repente fez todo o sentido: seu tempo acabou, seu tempo acabou. É o que ela diz. Muito boa, a música.
A parte dolorosa desse ciclo está chegando. Eu já sinto o cheiro de sangue no ar. Meu sangue, escorrendo sem ninguém ver. Meu sangue fluindo para fora e escondido pelo silêncio.
Eu vou acabar correndo de novo. Vou fugir pelas ruas e dirão que sou louco. Tudo de novo. “Como que aquele sujeito tão calmo fez uma coisa dessas?”
É que sorriso não fecha ferida.
Eu já desisti de tentar de me convencer de que minhas intenções são boas. Recentemente isso se tornou inútil: sendo boas ou ruins, eu sempre acabo no mesmo lugar. Sempre cometo os mesmos erros. Tudo vai acontecendo diante dos meus olhos, cada vez com um disfarce mais complicado. Eu nunca consigo desvendar o mistério antes de ele ter invadido as minhas entranhas. Antes de sentir a dor.
É só quando a dor chega que me livro das ilusões. E aí fico me perguntando sobre como tudo veio a ser de tal maneira. Pergunto inutilmente, porque sei. Eu sei muito bem.
Minha barriga dói de fome, acho que tem vultos aqui no quarto. Eles sempre me visitam durante a noite. Sempre parece que tem gente andando por aqui. Que falam no meu ouvido e vou escrevendo loucuras que eles me dizem.
Tudo isso me fez ficar meio sem juízo e confessar meus pecados ao branco co Word. Isso mesmo. Nada romântico. Eu odeio escrever com caneta. Nunca nem vi uma pena usada pra escrever.
O caso é que eu dei mais um passo em direção ao fim dos tempos. Tal fim se apresentou recente e mortalmente. E, ironicamente, no momento foi tão doce.
Há aquela voz de sempre na cabeça. Intuição. “Tudo deveria mesmo ser assim”. “A gente só sente a dor pra aprender com ela”. “Tal provação não vai para além das suas possibilidades”. “Desperte sua verdadeira essência”. “Esse fantasma com o qual você se identifica é patético”. “Descubra de novo que você é e era já a mais de um século”. “Abra o terceiro olho”!
Acho que eu invento esses delírios religiosos mesmo pra fugir da realidade. A nua e crua: o meu sonho tá acabando. A alegria, o prazer, estão saindo. Em breve, como antes e, quem sabe, como sempre, chegará o meu próprio tormento.
Só que agora eu mudei as cores dele. O que era meio azulado ficou rosa. Mais escuro, com contraste. Ficou mais bonito.
Eu rio de mim mesmo quando imagino que alguém poderá ler isso. O que pensariam?
Não. Se alguém conseguir ler e entender o que eu estou escrevendo, meu destino se tornará pior. A interpretação dessas palavras confusas seria a própria bala atravessando meu crânio.
Nosso lar é onde o coração está. Aqui é o meu quarto já há uns 8 ou 9 anos. No entanto, tenho que ir pra casa. Meu desespero aumenta quando lembro que não faço idéia de onde é isso.

Espinhos na minha cama



 Tem espinhos dentro do meu cobertor
E fui eu que os coloquei ali
Meu sangue já manchou o pano
Só porque eu quis

Nem sei se quero mesmo sofrer
To deitado agora nos espinhos
Lamentando por tê-los deixado aqui
E incapaz de me livrar deles.

É claro que também há uma rosa
E tem vezes que eu nem me furo
Tem sempre um cheiro bom
Mas as feridas não fecharam

Meu sangue está saindo
Minha vida vai acabando
Enquanto eu tenho rosas
E espinhos na minha cama...