Morte em 55



Não havia mais saída. Ela me achou, revirou minha casa e levou o caderno. Fim da linha pra mim. Então eu decidi testar o limite daquele desejo de vingança. Vendi tudo, troquei meu dinheiro por dólares e saí do país. Ela estava no aeroporto, mas não consegui encontrar seus olhos senão bem antes de embarcar. Ficaram claros com o sol se pondo de uma forma completamente nova pra mim, mas o olhar era o mesmo. Inconfundível. Ainda me pergunto se fui eu que me deixei capturar ou se ela que me deixava escapar.
Foi uma aventura e tanto. Passeamos pelo país com carros alugados por lugares estranhos. Da minha parte, nunca quis saber de nome algum. Pessoas, lugares, nada desviava meu foco: Cada vez que eu a via me perseguindo, minha stalker pessoal, meu salgue fervia. Deixei bilhetes, dinheiro e cartões postais pelo caminho. Era como a paixão. Cada mínimo sinal da outra pessoa nos causa calafrios. De certa forma foi uma grande paixão. Me afetou até as entranhas!
Com o tempo um estranho medo foi me dominando e consumindo. Medo de encontra-la face à face pra conversar. De ouvir sua voz no lugar de suas mensagens escritas de ódio. Só quem viveu um amor secreto poderia entender o que eu senti.
Antes do nosso último encontro, ela quase me capturou. Teria conseguido, mas acho que estava tão nervosa quanto eu. Aquela noite se inscreveu na minha alma...
Aluguei um quarto num motel que ficava em um posto de gasolina e ela estava ali dentro me esperando. Uma das melhores surpresas da minha vida. Tirei meu casaco até a metade sem perceber a presença dela. Mal entendia o que estava acontecendo quando ela usou o casaco pra prender meus braços e me derrubou com um desajeitado chute no peito. Eu sabia que era era. Meu coração acelerou e minha perna ficou bamba enquanto eu me esforçava pra me esquivar dos golpes de faca que ela tentava desferir.
Num instante ela estava em cima de mim com faca apontada pro meu pescoço. Foi uma coisa muito impulsiva e estranha, já que a minha barriga estava vulnerável, mas meu pescoço não. Consegui segurar os dois braços dela. Era uma moça muito leve se comparada ao peso que eu tinha. Ela chorou e eu senti pelo menos duas gotas de lágrima caíram no casaco. Estranho eu ter percebido justo aquilo, mas pareceu tão alto o som do impacto daquela gota. Virei pra cima dela e a faca caiu debaixo da cama. Foi tudo muito rápido. Ela acertou meu saco com uma joelhada e correu.
Assisti enquanto ela sumia no meio da noite. Eu me lembro do cabelo dela, que ficava sempre preso, mas se soltou no conflito e balançava. Um farol de carro se refletiu naqueles fios negros enquanto eles se perdiam na mata.
Ninguém se feriu, mas fiquei a noite inteira sentado no chão fumando cigarros. As minhas pernas tremiam com o frio da minha barriga e eu numa havia sentido meu coração bater tão forte como naquela noite. Minha vida até ali tinha sido calma, controlada. Mesmo matando, com aquela intimidade visceral, eu não me sentia assim. Era como se todo aquele ódio que ela sentia me envolvesse.
Meu mundo estava em chamas e eu queria mais.
Despois daquela noite ela desapareceu por mais de um mês. Na verdade, eu já tinha parado de contar os dias, mas pareceu uma eternidade. Em cada esquina, minhas mãos esfriavam, minhas pupilas dilatavam. Ela podia estar ali! Eu me senti intensamente humano nos primeiros dias.
Mas ela desapareceu. E a humanidade que ela deixou foi se esvaindo. Se transformou não em fome por destruição, como outrora, mas em apatia. Comi pouco, dormi muito e não tive sonhos. Acabei parando em uma cidadezinha no estado do Colorado e ficando quase todo o resto do mês ali. Lembrei de presas que eram abandonadas pelos entes queridos, que fugiam aterrorizados. Seria isso que sentiam? Quando seus amores, suas famílias os abandonava comigo sem um pingo de luta?
Cheguei num ponto em que gostaria de ser morto por qualquer pessoa. Apenas pela leve emoção e o alívio daquela sensação.
Há mais de vinte anos eu não tinha amigos ou família, mas somente naquele momento eu me senti sozinho. Mas ela veio. Justamente quando eu menos esperava. Eu estava entregue ao vazio e dormi olhando pra um caderno de desenhos que achei naquele quarto. Alguma criança o perdeu ali. Quando acordei, lá estava ela!
Já não me olhava com tanto ódio. Parecia sentir nojo. Talvez pena, dúvida, mas o ódio desapareceu. Era noite e os olhos dela estavam negros novamente. Meu corpo estava amarrado com cordas numa mesa e minha blusa estava desabotoada. Bem ali naquela mesa eu vivi mais do que em toda a minha vida.

- Quais são suas últimas palavras? – perguntou ela
- Achou sua faca? Deixei no porta luvas do meu carro. – respondi.

Ela respirou fundo, me olhou nos olhos e saiu. Foi buscar a arma. Lembro de ter guardado a faca porque ela estava toda arranhada com letras e números. Podia ter algum significado especial pra ela.

- Essa faca não é minha – disse ela ao passar pela porta – é sua.
- Eu não tenho armas. Apenas uso o que o ambiente me fornece.
- Você cortou a garganta dela com essa faca. Desgraçado... Fala disso como se fosse uma coisa qualquer!

Ela encostou a ponta da faca no meu peito, segurando o choro.

- Quais são suas últimas palavras!?
- Tenho um pedido a fazer.
- Não vou te soltar – ela disse enquanto perfurava levemente minha pele.
- Quero que você olhe nos meus olhos e esteja comigo.
- O que?
- Você olha pra lâmpada acima de mim, pra porta, pros carros que passam na estrada, mas não pra mim. Você veio pra me matar, não foi.

Ela olhou nos meus olhos e chorou.

- Porque você fez isso? O que minha irmã te fez?
- Ela defendeu minha presa
- O Luis? Seu filho da puta!

O momento foi delicioso Ela me dava socos desajeitados e gritava com uma intensidade que eu nunca fui capaz de vislumbrar senão naquele momento. Os gritos dela cerravam meus dentes e os socos cerravam meus punhos. Eu era capaz de ter emoções sem matar, afinal. Emoções tão fortes que eram capazes de me privar da capacidade de raciocinar. Eu podia ser humano.
Ela subiu em cima de mim e começou a bater minha cabeça contra a mesa. Minha musculatura estava relaxada, então acabei perdendo a consciência.
Quando acordei, estava solto e ela estava me olhando sentada numa cadeira de balanço.

- Eu não vou me igualar a você. Eu não sou assassina... – disse ela
- Sabia que Beth implorou pela vida do primo? Ela até se ofereceu pra morrer no lugar dele.
- Porque você matou os dois?
- Ele era a presa. Ela devia ter ido embora.
- Porque ele?
- Ele bateu numa criança. É uma coisa que me atrai nas presas e uma das razões pelas quais eu mato tanta gente. Eu gosto de coisas simples e comuns, que se encontra em cada esquina. Coisas raras são insípidas pra mim.
- Você podia ter deixado ela viver...
- Não. Eu gosto de matar os defensores. A coisa toda fica mais emocionante e espontânea.

Ela perdeu o controle e colocou a faca no meu pescoço. Chorava como eu nunca consegui com os olhos fechados.

- Fica aqui. No presente. Olha nos meus olhos... – eu disse em voz baixa

Mesmo estando solto, eu não me movi: Estava exatamente onde e como queria estar. Ela abriu os olhos, que voltaram a brilhar com ódio. Lindos.

- Essa faca está sem fio. Você vai ter que me matar com a ponta.
- Porque você quer morrer?
- Não quero propriamente morrer. Quero só sentir um pouco da sua humanidade. Você está transbordando!

Nossos olhos ficaram presos uns nos outros por eternos segundos até ela se curvar e encostar os lábios no meu ouvido. Foi quando ela enfiou a faca na minha barriga. Devagar enquanto elevava o tom do ruído que soltava no meu ouvido até ele se transformar num grito. A cada facada, um novo grito surgia. Ou melhor, a cada grito, uma nova facada surgia, porque quem ditava o ritmo de tudo era a respiração dela. Nunca me senti tão vivo em toda aquela vida.