Sobre a imposição da lei de Biossegurança



Introdução

O presente trabalho tem como objetivo ilustrar a teoria de Howard S. Becker com o exemplo da lei de Biossegurança, parcialmente aprovada em 2007 no congresso brasileiro. O intuito é mostrar como cada grupo envolvido atuou na imposição dessa lei, ilustrando essas ações com declarações de membros de cada um dos lados do conflito. Vamos, ainda, demonstrar como cada um parte de uma noção de vida diferente e como a lei, se ficasse fixa com os argumentos de apenas um lado, prejudicaria diretamente as instituições envolvidas: A Igreja e a Ciência.

Conflitos ideológicos

Os grupos religiosos cristãos se engajaram na discussão da lei de biossegurança com o intuito de impedir que qualquer tipo de pesquisa e tratamento com células tronco embrionárias fosse feita. Nesse conflito, diversos argumentos falaciosos foram utilizados por religiosos.

“A mídia tem explorado os testemunhos de portadores de doenças crônicas para as quais ainda não existem tratamentos que, justa e honestamente, buscam a cura para seus males. Esses testemunhos muitas vezes visam sensibilizar a opinião pública no sentido de se obter a rápida aprovação de leis que autorizem os cientistas a utilizarem embriões humanos como se isso pudesse "apressar" os resultados desses trabalhos de pesquisa, o que não é verdade porque as pesquisas com células-tronco retiradas de outros tecidos humanos (placenta, medula, entre outros) continuam se desenvolvendo a passos largos, no sentido de se alcançar os benefícios para a saúde de todos, o que é também o anseio da Igreja.” ( Pe. Vando Valentini - Coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC/SP)

Pode-se notar que o padre procura ocultar o fato de que células tronco totipotentes e pluripotentes, que são mais eficientes para a pesquisa com células tronco, só podem ser encontradas em embriões. Claro que ele usa esse argumento por conta de toda uma visão de mundo. Isso fica ilustrado na fala do autor no mesmo artigo[1]:

“O que fazer com as pessoas doentes que poderiam esperar ser curadas a partir do uso da vida de embriões humanos? É preciso cuidar delas. Tenho certeza de que ninguém quer salvar sua vida à custa da vida de outro homem inocente.”

Aqui podemos perceber que há a noção de homem inserida no zigoto, dependente de toda uma visão de mundo, segundo a qual o zigoto já possui uma alma. Ora, nos discursos que afirmam que a vida começa na nidação[2], ou que começa na formação do sistema nervoso central a noção de alma fica em segundo plano, dando lugar à noção de que a vida é um fenômeno biológico. Ter essa crença disseminada como conseqüência das práticas de pesquisa e de tratamento significa enfraquecer o poderia político da igreja. Isso significa, basicamente, que a igreja está se defendendo enquanto instituição contra uma prática que lhe será prejudicial.
Outro exemplo ilustrativo dessa posição parcial que visa defender os interesses da igreja consta na fala de Dalton Luiz de Paula Ramos[3]:

“Um dos pontos que se coloca é o uso de zigotos/embriões humanos como fonte das células tronco, que suscita duas perguntas: Os zigotos/embriões são a única fonte possível dessas células? Qual o estatuto dos zigotos/embriões humanos?
À primeira pergunta, muitos cientistas respondem NÃO. Afirmam que, com células tronco retiradas de tecidos de indivíduos adultos, é possível obter sucesso terapêutico.
Quanto à segunda pergunta, o dado incontestável da genética é que, desde o momento da fecundação, ou seja, da penetração do espermatozóide no óvulo, os dois gametas dos genitores formam nova entidade biológica, o zigoto, que carrega em si um novo projeto-programa individualizado, uma nova vida individual.”

É explícito que o autor busca exibir apenas parcialmente a questão da fonte das células, pois não é útil para a sua causa exibir a diferença gritante entre as células-tronco de tecidos adultos e a dos zigotos. Além disso, ele usa o termo embriões junto com o do zigoto, parecendo indicar que pesquisas são feitas com embriões. Mas não são.
No segundo argumento, voltamos à posição de que o zigoto, somente por possuir um código genético diplóide, é uma pessoa. Isso depende da noção de que há um espírito nesse zigoto. Caso contrário, só consideraríamos uma pessoa em potencial aquele zigoto que pelo menos sofreu a nidação, e que se encontra em desenvolvimento. O objetivo aqui não é falar contra a noção de espírito, mas deixar claro que essa não é uma noção científica, mas que é apropriada pelos religiosos como um dado científico incontestável porque isso dá ao argumento deles maior peso, por mais que seja falacioso, diante dos leigos. E isso é suficiente para gerar força política no sentido de impor a lei.




[1] http://www.ghente.org/temas/celulas-tronco/artigos_padre.htm
[2] Fixação do zigoto no útero materno
[3] Professor Associado da Universidade de São Paulo - http://www.ghente.org/temas/celulas-tronco/artigos_dalton.htm