Deixem-me voltar pra casa



Esse mundo é frio, congelado
Vocês o sabem, já vieram aqui
Andar por aqui queima a pele
Fere o coração, mesmo de um soldado

Selvageria, brutalidade, imbecilidade

A noite está fria
Quero meu cobertor
Ele está em casa, com os meus
Tudo o que eu amo está em casa

As palavras falham, sabe?
Na verdade nem sei mais nomear
As coisas que mais amo
Não tenho capacidade de relembrar

São idéias inconcebíveis de um mundo antigo

Mas essa noite está silenciosa
Quero os sons do lar
Então deixem o sono me levar
Só por essa noite, voltar pra casa

Porque vivendo nesse mundo
Carregando essa sensação horrível
Tudo o que eu preciso agora é disso
Ir para o meu lar, onde nada mais importa

Poderiam vocês, generais dos astros,
Conceder um dia de folga dessa tarefa?
Deixar-me esquecer meu posto
E voar no túnel pelo espaço?

Reflexões sobre a poligamia: despedaçamento e costura


Eu não poderia deixar de começar esse texto com uma fala de uma professora minha. Estou certo de que ela não se importará.
Certo dia, relutante de abordar assunto (provavelmente por ser cristã), a professora tentou trazer o assunto da sexualidade e dos “ritos” que usamos pra criarmos pares. Se enrolando pra pronunciar o que ela queria dizer, ela acabou perguntando quem eram os solteiros da turma e ninguém respondeu. Talvez ela não tivesse em mente que se declarar solteiro traz uma série de compromissos e, quiçá, danos à auto-estima. Ninguém respondeu, e a reação dela eu nunca mais vou esquecer:

- “Mas é só o Silas que é solteiro nessa sala?” – disse ela.
- “Espere um pouco, quem disse que eu sou solteiro?” – disse ela
- “Ah, você não é?” - disse ela num tom de descrença

Eu me perguntei se minha conduta mostrava isso: sempre pensei que a poligamia fosse facilmente escondida, bastando apenas não declará-la tão abertamente. Mas não foi o caso...
E não acabou por aqui.

- “Eu quis saber quem eram os solteiros pra perguntar como os rapazes paqueram” – disse ela com aquela risada de criança arteira
- “Mas quem disse que só os solteiros paqueram?” - eu comentei
- “A, mas esses são os safados” – ela disse num tom de voz baixo sem me olhar nos olhos.

Não acredito que ela tenha percebido o impacto que aquilo teve e como isso se ligou a tudo que se passa nesse mundo estranho. Depois dessa introdução só me resta fazer algumas confissões e assumir que faço parte de um grupo para o qual a sociedade dá as costas. Um grupo de “safados” que são “contra os direitos humanos” e que estão deflorando, por sua própria condição, toda a secular idéia de família. Os polígamos.

Acredito que descobrir algo assim tem algumas semelhanças e diferenças com descobrir a homossexualidade. Trata-se de uma condição, não de uma escolha; e também é uma coisa discriminada, considerada pecaminosa, moralmente incorreta; é, aliás, praticada desde que o mundo é mundo inclusive em sociedades que a proíbem. Mas, diferente dos homossexuais, os polígamos não possuem um movimento forte e politicamente engajado; não têm uma identidade atrelada à sua condição e nem locais onde realizam suas atividades. Não há quem os ampare, nem onde possam recolher nossa cabeça. Além disso, há pouca perseguição sistemática e violência física, como acontece com os homossexuais, especialmente porque a cultura masculina tende a não reprovar essa conduta. Exceto, é claro, quando isso os afeta: se sua mulher decidiu ser polígama, por exemplo. Nesse caso, os polígamos são mortos por pessoas pessoalmente afetadas enquanto que, com freqüência, homossexuais são mortos por estranhos que os perseguem por razões culturais e psicológicas.

Boa parte dos polígamos fogem da honestidade. Assim, se envolvem em relações onde se presume a monogamia e simplesmente pulam a cerca. Para alguns a verdade não é tão importante quanto amar, então vivem cada momento com seus segredos, suas vidas duplas. A respeito de tal classe de polígamos nem tenho muito a dizer. Talvez mintam pra si mesmos dizendo que o outro parceiro é somente algo do momento ou só carnal, talvez só mintam pra todos, inclusive seus parceiros e só se preocupem consigo mesmos. Talvez sejam eles os responsáveis pelo sofrimento dos demais, na medida em que criam o estereótipo de promiscuidade que se associa a tal grupo.

Há outros que estão por aí nos guetos. São com freqüência bissexuais, usuários de drogas ou simplesmente marginais. Sua anomia tem tamanha proporção que a poligamia nem é um problema. Não sei se são corajosos ou loucos, mas a realidade é que não vão ser aceitos como cidadãos decentes e dificilmente os veremos sendo publicamente respeitados. Aliás, tenho a impressão de que esses grupos marginais tendem a funcionar com mecanismos que levam seus membros à progressiva entropia: sendo eles rejeitados, revoltados, anarquistas, acabam vivendo uma vida de pouca perspectiva onde só possuem respeito entre seus pares íntimos.

Seja pelo meu temperamento, seja pela minha criação, não consigo me adaptar a nenhum dos dois.

A idéia de mentir para as pessoas que amo é repulsiva. Tal atitude denotaria apenas que amo a mim mesmo acima de todas as coisas, e isso não é verdade. Nada, pra mim, vai além do amor. Isso é mais uma realidade do que uma escolha: se não compartilho tudo, não compartilho nada. E se não compartilho nada, não há relação, não há intimidade de nenhuma forma.

A idéia de sair pro gueto simplesmente não se encaixa em mim. Não tenho os traços de personalidade que são necessários para a integração num grupo desses. Sou excessivamente tranqüilo, excessivamente pacífico, seguro, estudioso, etc. Eu sou tudo que o gueto despreza e minhas relações, de uma forma geral, são coisas que vivem à luz do dia. Posso ser anarquista, mas isso é um posicionamento intelectual sociológico e epistemológico (Feyerabend): não uma atitude, não há muito de estilo de vida nisso, mas no estilo de pensamento. Isso sem falar que, por conseqüência, as pessoas com quem me envolvo não fazem parte de guetos e não vivem, de forma alguma, qualquer tipo de anomia. São de “família”.

O resultado disso tudo é que não há um espaço na nossa sociedade onde a poligamia se encaixe e, simultaneamente, eu possa me encaixar. Relações, no meu contexto, se constroem de maneira íntima, amorosa e aberta. Na realidade, pensando bem, se não fosse pela poligamia, estaria na posição de dizer que me relaciono de maneira bem saudável. Mas o saudável é algo culturalmente constituído, e como a professora disse, quem não é monógamo é safado.

Mas o que um polígamo nessa situação pode fazer? Compartilhar, de um modo geral, significaria perder a confiança, o amor das pessoas mais próximas. Não compartilhar significaria não tê-las como próximas. O problema é que uma espécie de censura que as pessoas têm, algo que as impede de amar outras pessoas quando estão comprometidas, não é algo dado aos polígamos. Não há a experiência de um amor ofuscando, acabando com o outro. 
O que se procura é colocar as cartas na mesa, compartilhar e viver constantemente com o terror de que, num dia dessas, quem você ama não mais tolere sua condição e te deixe. Ou então acreditar na mentira de que tudo pode ficar sobre controle e viver sempre no risco de cair em tentação ou simplesmente surtar por essa vida de negação de si mesmo. Mesmo assim, não há como todo os amores se tornarem realidade, pois a esmagadora maioria das pessoas não aceitam dividir; e se aceitam, geralmente há condições específicas que são impostas pra manter a estabilidade.

Se o polígamo tiver sorte, se ele for profundamente amado, talvez consiga viver mais de um desses amores, mas não pode haver conflito de papéis. 
Isso me lembra da relação de Jung com Emma e Tony. Em seu coração e em seu discurso, pelo que sei, ele as amava e as considerava suas esposas. Mas ela nunca foi reconhecida, nunca teve filhos e nem podia participar dos almoços com a família. Por mais que eles se amassem, ela nunca pode conflitar com Emma, que era a mãe dos filhos de Jung. Talvez esse tenha sido um caso de sucesso, pois, até onde sei, o próprio temperamento de Wolff era independente demais pra levar uma vida tal como a de Emma, mas ela não foi a única. Há rumores de que Jung teve uma relação com Sabina Spielrein e cartas que parecem dar créditos a eles (ver memórias, sonhos e omissões - Dr. Sonu Shamdasani). No entanto, nesse caso não houve qualquer tipo de acordo. Ela quis Jung por completo e ele não pôde ceder. O que não significa, é claro, que ele não a amou. Apenas que houve um conflito com relação aos papéis, pois Emma Jung era, para Jung, seu fundamento, Toni Wolff era a essência e Spielrein, aquela que não teve lugar. Diríamos que esse caso foi de menos amor, de menos importância do que os outros? Creio que não. Mas de uma coisa eu sei: por mais que tenham aceitado, Toni e Emma sofreram. 

Tudo o que resta, portanto, é lutar com todas as forças para não deixar alguns amores se tornarem vividos, é se evadir do próprio coração! É ver quem nós amamos desamparado, desprotegido, sem que possamos fazer qualquer coisa a respeito. É ter para uma pessoa um lugar quente no coração e, ainda assim, assistir ela congelar diante dos olhos.

Na realidade, me vejo com o temperamento tão parecido com o de Jung em certos aspectos que chego a questionar e rejeitar certas características de sua obra, por mais que a admire. Talvez eu consiga fazer como ele, talvez eu faça como a figura que se encontra no topo desse post. Mas a realidade é que, de uma forma ou de outra, essa condição será sempre um podre, algo a ser escondido, a ser, inclusive, negado em sua existência; sempre trará, aliás, sofrimento e insegurança pra quem estiver envolvido, talvez pela bagagem cultural.

Talvez algum dia isso mude, talvez um dia um homem possa erguer sua cabeça, se declarar polígamo e ainda assim ser reconhecido como um cidadão decente que preza pelo bem de todos. Mas isso só vai acontecer que houver união.