It's not over till it's over



Paraty, Rio de janeiro

A vida tinha acabado. Nada mais restava. Ele teve um ataque de ciúmes mais intenso do que os outros. Bateu na namorada e saiu sangue. Acabou preso, mas ela retirou a queixa. Já havia mais de um mês que eles não se falavam, e seu coração estava parado. A vida não tinha mais sentido e ele até largou o emprego. Era balconista de farmácia.
À noite ele não conseguia dormir. Lembranças o assombravam. Ligou a TV e ouviu notícias de violência generalizada no centro do rio. Quando o repórter que documentava foi atacado e morto, a transmissão foi cortada e ele se preocupou. Ganhou um ânimo de vida, decidiu ir até a casa dela. Chegando perto, decidiu se esconder, já que ninguém o receberia bem. Até os vizinhos sabiam de seus ataques públicos de ciúmes e do mais recente. Ficou aquela noite toda no meio da mata.
Ele estava no topo de uma árvore, de onde tentava olhar pra dentro do quarto dela. “patético” – pensava ele – “eu já passei tantas noites aí e agora nem consigo olhar o interior”.
Ela estava como sempre, com a luz do banheiro acesa porque não gostava de dormir em total escuridão. Encontrou galhos rígidos nos quais pode se acomodar enquanto fixava o olhar na janela dela.

- Como eu pude ser tão demente? - sussurrou ele – ela era tudo.

Ele queria fazer faculdade de farmácia, mas não havia nenhuma por perto e ele não tinha disposição para se mudar. Seria muito custoso, ele teria que trabalhar muito. Preferiu se acomodar. Ela estava pra se formar veterinária, já trabalhava no consultório com a mãe. Era muita areia pro caminhão dele.
Era confuso o modo como ela lhe fazia poesias, declarações. Uma vez até compôs uma música meio desajeitada que ele desdenhou. Pensando naquele momento, ele não podia entender como ela podia amá-lo.

Ele ouviu passos de corrida pela estrada. Era nítido que o corredor que os seguia usava sapatos sociais. Não faz sentido alguém correr no meio da noite com sapatos sociais. O corredor passou perto de um pequeno lago que refletia a luz da lua. Deu pra perceber que ele estava usando uma gravata. Afinal, porque alguém correria de roupa social numa rodovia federal de madrugada?

Deve estar fugindo de uma dessas ondas de violência, talvez as pessoas estivessem sendo possuídas pelo diabo no centro da cidade. Ele só se perguntava por que Deus não fazia nada enquanto o diabo e seus lacaios possuíam tanta gente. Seriam mesmo demônios? E se fosse tudo planejado por pessoas?

Ela acendeu a luz do quarto e se levantou. Deu pra ver a sombra na cortina. Estava uma correria pela casa, ele ouvia murmúrios, mas não conseguia entender. Sabia que estavam com pressa. Ele tentou se mover pra descer, mas o galho quebrou e ele caiu.

- Cuidado cara, tem um ali. – alguém disse.

Ele ia falar, mas ouviu um berro assustador. O homem de gravata atacou dois homens que estavam escondidos num arbusto. Os gritos foram bem ouvidos pelos moradores da casa, que correram pra garagem.
Ele notou que a situação estava ficando desesperadora quando os gritos cessaram. Ele ouviu barulho de carne se rompendo, mato sendo revirado. Andou abaixado até seu carro, ou melhor, o carro de seu pai, e entrou. Ela e a família saíram em disparada pela estrada e ele ligou o motor.
De repente, um homem surgiu e bateu as mãos no vidro, da janela do motorista, sujando-a de sangue.

- Me ajuda, cara! Pelo amor de deus!

Ele não teve tempo de se recuperar do susto quando o homem foi puxado por outros dois homens. Quando o terceiro chegou, o do terno, ele pisou fundo. Mas a imagem do rosto ensangüentado e inexpressivo ficou na sua mente. Se não fosse pelo medo, esse seria ele. Um monstro destruidor e sem emoções. Mas ele tinha que salvá-la. O carro que ele dirigia era rápido, um Ecosport. Não foi difícil alcançar o UNO dela. Eles entraram numa fazenda que sinalizava “Propriedade privada, não ultrapasse”. O portão estava aberto e eles foram à direção de um casarão. Ele desligou o farol e o seguiu, mas estava bem visível com a luz da lua. Chegando lá, foi recebido com uma pistola apontada para o para brisas.

- Quem é você e o que quer aqui!? - disse um senhor de uns 60 anos com barba branca
- Sou o Rodolfo, eu segui o carro da minha namorada, quer dizer, minha ex pra proteger ela! – disse ele ofegante
- Quem é sua namorada?!
- A Fernanda, filha da Olívia.
- Então corre rapaz, porque nós vamos lacrar essa merda.

Ele saiu do carro e deixou a chave na ignição. Correu na direção da entrada e logo chegou lá. Viu janelas barradas por madeira e móveis e algumas pessoas se movimentando. Eram todos da família dela, menos esse senhor, que era um caseiro recém contratado. Não o conhecia, e por isso convidou-o tão apressadamente. Chegando lá dentro, Fernanda o viu e derrubou um copo de água que estava bebendo.

- Rodolfo! – ela gritou

Correu na direção dele e deu-lhe um abraço forte

- Quem deixou esse filho da puta entrar!? – gritou Olívia
- Fui eu senhora. Disse que era conhecido – disse o homem.
- Porra, Marcinho, esse cara aí foi aquele vagabundo marginal que bateu na Fernanda!

Enquanto eles falavam, a vontade de viver de Rodolfo retornava a ele enquanto sentia novamente o calor dela. Ela o largou e ficou parada olhando pra ele enquanto todos esperavam pra ver sua reação.

- Você ficou me seguindo por aí esses dias, não ficou? - perguntou ela
- Algumas vezes sim.
- Por quê?
- Achei que alguém iria querer te passar cantada.

Ela fez uma expressão de nojo.

- Eu sempre quis acreditar que você era muito mais, que no fundo você era tudo. Mas a verdade é que todos estão certos e eu que fui teimosa. Você é um covarde, um merda. Já viu que todo mundo aqui é da minha família, que ninguém aqui vai me comer? Ou você acha que meu tio vai dar em cima de mim?
- Vai embora daqui, seu desgraçado! – gritou o tio
- O tio Alberto ta certo, Rodolfo. Vai embora. Eu não quero nunca mais ver você. Acabou, entendeu? Acabou!
- Mas, eu só queria ver se você está bem...
- Não importa, some daqui! – gritou Fernanda segurando o choro
- Se ele sair, vai acabar morto. Eles estão vindo pra cá – disse Marcinho.
- Eu não ligo mais de morrer. Só queria restaurar um pouco da honra que um dia eu tive. Quero que saiba, Fernanda, que tudo o que fiz foi mesmo porque sou um merda. Eu sempre me senti uma sombra fraca, um reflexo pálido de tudo o que você queria e esperava que eu fosse. Sempre soube que você é boa demais pra mim e nunca deixei de me sentir inseguro. Em cada rua, em cada esquina, poderia surgir alguém melhor, mais merecedor. E você faz amizade com os outros tão facilmente que isso me enlouqueceu! Enfim, só queria dizer que te amo. Se eu morrer, a última coisa que vou lembrar é do teu rosto.
- Prego a porta? - disse Marcinho

Os familiares ficaram confusos, mas Rodolfo saiu. Desceu uma pequena escadaria e virou-se pra olhar pra Fernanda por uma última vez quando um deles o atacou por trás. Uma mordida fatal no pescoço.

- Derruba ele! – gritou Alberto pra Marcinho

Rodolfo começou a lutar contra o invasor até que um tiro certeiro foi disparado. Atravessou a cabeça do monstro e se alojou na coluna de Rodolfo, que caiu no chão imóvel, inconsciente. A porta foi trancada.

Pode-se cruzar com ele nessas redondezas. Há rumores de que ele se arrastou pra longe depois que “despertou”, atrás de sons na mata, e de que quando os refugiados finalmente fugiram seu corpo não foi morto.

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