The Blue Flower


Eu caminhava trôpego
Por um caminho que nem conhecia
Nem abria muito meus olhos
Só andava, sem paixão...

Eu às vezes via miragens
Com meus olhos fechados
Eu via flores
Uma mais bela que a outra

E todas as vezes era ilusão

Foram tantos enganos
Que quando ela surgiu
Nem acreditei
Parei, olhei, hesitei.

Não acreditei...

Já havia visto tantas flores de mentira
Que não tinha mais fé
Mas essa é diferente
Ela sim possui aquele aroma

Aquele que te faz querer mais

Eu fui à direção dela
Ela se fechou
Voltei e ela se abriu
Fui de novo e ela fechou

Eu tinha que esperar o momento certo

Quis me convencer que era miragem
Mas não consegui
E o que me salvou mesmo
Foi um milagre

Na noite, no momento de descanso
Eu a assisti, tão bela
Estava decidido a seguir em frente
Chorava por partir, sorria com lembranças

Mas ela se abriu
No meio da noite
Contra todas as expectativas
E mesmo naquela noite sem lua

Estava azul

O vento ajudou, e senti seu aroma
Tão suave...
Se abriu pra mim!
É real, se abriu de noite!

Riam, digam que é mentira
Que sou louco!
Nunca me importei mesmo...
O que sei é que ela se abriu

O que mais importa?

Uma breve crítica ao modelo tipológico MBTI

Em primeiro lugar, vamos situar o leitor não familiarizado com o que pretendo criticar. O MBTI (Myers-Briggs Type Indicator) é um indicador de tipos psicológicos baseado nos Tipos de Jung. As diferenças entre as tipologias são claras. Enquanto que a primeira é profundamente embasada e possui uma estrutura de funções superiores e funções inferiores (ou inconscientes), o segundo é uma abstração reducionista que ignora esse pressuposto teórico e acrescenta mais uma variável na tipologia que não possui absolutamente nenhuma necessidade de existir.

Vamos à prática para que me entendam bem:

Na tipologia de Jung há três pares de opostos. O primeiro é Introversão e extroversão. Esse par é denominado atitude psicológica e funciona de forma relativamente autônoma em relação aos outros, que são denominados funções psicológicas. O Introvertido, em linhas gerais, tende a colocar o mundo interior em primeiro lugar, moldando sua percepção do mundo externo segundo esse mais íntimo. O Extrovertido, por outro lado, tende a colocar o mundo exterior em primeiro lugar, moldando o próprio mundo interior segundo tal critério.
Não há indivíduos que são apenas introvertidos ou apenas extrovertidos. Tanto um extrovertido pode ter a faculdade de introversão bem desenvolvida quanto o contrário. No entanto, a consciência se estrutura de maneira que um tipo sempre seja mais influente do que o outro. Jung, por exemplo, que foi quem concebeu os tipos psicológicos, desenvolveu bem a extroversão, mas nunca deixou de ser mais introvertido do que extrovertido. Um ponto interessante é que uma pessoa introvertida pode ter a extroversão mais bem desenvolvida do que uma extrovertida.

Basicamente é isso que esse par de opostos representa. O processo mais dinâmico que acontece nas funções psicológicas funciona em paralelo a esse, mas sem apresentar uma grande dependência como as que possuem entre si.

Há dois pares de opostos: Intuição/Sensação e Pensamento/Sentimento.

As quatro funções funcionam por uma lógica que, aliás, é excluída do modelo Myers-briggs: Existem a função superior e a auxiliar, além da auxiliar inferior e a inferior.
Num exemplo, um indivíduo do tipo pensamento com auxiliar de sensação terá, obrigatoriamente, a auxiliar inferior Intuição e a inferior como Sentimento.
Isso porque as funções formam pares opostos que se excluem: Se o pensamento é mais bem desenvolvido, o seu oposto, o sentimento, tende a ser deixado de lado. A sensação, nesse caso, é auxiliar. Logo, já que ela não é tão bem desenvolvida quanto a razão, a intuição não é tão excluída quanto o sentimento.
Para demonstrar de maneira mais clara o tipo que uso como exemplo:

1)Pensamento
2)Sensação
3)Intuição
4)Sentimento.

Fica claro aqui que há uma relação de proporção: Na medida em que o pensamento fica bem desenvolvido, o seu oposto, o sentimento, se torna inferior (inconsciente). A sensação, no entanto, não é tão imperativa quanto o pensamento, já que é a função auxiliar. Daí decorre que a intuição não fica tão excluída quanto o sentimento.

Esse sistema possui uma enorme plasticidade, já que, durante a vida, a ordem de prioridade dos tipos psicológicos varia, de maneira que a mente busca desenvolver todas as potencialidades. Claro que há casos em que isso não acontece, mas, como é um processo natural, impedi-lo pode causa distúrbios psíquicos, como complexos e efeitos psicossomáticos.
Noutras palavras, a mente se desenvolve de maneira análoga ao corpo, e as diversas funções psicológicas são um aspecto desse crescimento. Da mesma maneira que um indivíduo pode não desenvolver o corpo por subnutrição, por exemplo, também um indivíduo pode não se desenvolver psicologicamente por conta de obstinação e convicções demasiadamente fixadas.
E os “efeitos colaterais” de tal estagnação são como o equivalente psíquico da fome, sede ou abstinência sexual.

Assim, por mais que, no fim da vida, o indivíduo mantenha os traços que teve desde a infância, conforme ele amadurece (se ele permitir que isso aconteça), ele pode desenvolver sua função inferior até um ponto considerável, eliminando, assim, a possibilidade de um modelo para todos o do tipo dele. Se formos usar o tipo acima como exemplo, provavelmente pensaríamos num engenheiro cético e racionalista. É o mais provável. No entanto, ele pode ser, além disso, um escritor e um poeta, sem, com isso, mudar o essencial de seu tipo psicológico. Por isso é muito difícil usar os tipos psicológicos como definição. Devem, antes, ser considerados de maneira plástica com relação a cada caso específico. A tipologia Junguiana não é, de maneira alguma, um modelo padronizado de separar as pessoas em diferentes tipos de função psicológica, tampouco um indicador para a escolha de profissões. Na verdade, Jung critica essa tendência do nosso sistema, que coloca cada tipo de indivíduo numa função correspondente às suas funções superior e auxiliar, renegando suas outras potencialidades e dificultando o processo de amadurecimento. De qualquer maneira, essa dificuldade não é, de maneira alguma, um empecilho definitivo, e essa lógica social é baseada na escassez de recursos: apenas aqueles que não precisam se preocupar com a própria sobrevivência (como Platão, por exemplo) podem se dar ao luxo de colocar tal atividade como prioritária. Isso exclui a maior parte da população, embora, de maneira geral, a própria mente do indivíduo o coloque em situações nas quais ele acaba por se desenvolver.

A tipologia Myers-briggs, no entanto, apresenta um resultado fixado, onde essa complexa relação entre os fatores é desconsiderada e se estabelece um padrão rígido demais para ter grande utilidade na compreensão de pessoas reais. É tão vazia e generalista que beira ao ridículo. Mais um efeito do pragmatismo...
Além disso, há uma falha bem obvia nessa tipologia, que parece ter resultado da ignorância em relação à estrutura tipológica de Jung. Vamos, então, primeiro avaliar que relações existem entre as funções psicológicas.

A intuição determinar as possibilidades de algo. A sensação, as características sensoriais detalhadas sobre ele. A razão determina o que algo é, e o sentimento determina o seu valor.

Para ser bem simples, a Intuição é a avaliação mais abstrata de possibilidades. Apesar de lidar com os fatos percebidos pelos sentidos, ela muitas vezes se baseia em informações inconscientes. Essas podem ter origem na percepção “maior” do cérebro, de uma forma mais avançada de raciocínio inconsciente ou, para quem aceita tais premissas, também podem ter origens na percepção mediúnica¹. Para um intuitivo, é mais importante a teoria por trás de uma coisa do que colocar essa coisa em prática.
Os indivíduos Intuitivos tendem a ser bastante criativos e, por vezes, ingênuos.

A sensação é precisamente o oposto da Intuição. É um tipo de avaliação baseado diretamente dos sentidos e que não considera muitas possibilidades para além do obvio. Essa função é responsável pelos mais diversos tipos de engenhosidade humana. Um engenheiro civil, por exemplo, usa essa função, enquanto que o arquiteto usa a intuição. O sensitivo tende a ter uma memória melhor e maior foco para eventos físicos e práticos, não se preocupando muito com abstrações teóricas.
Os sensitivos tendem a não criar muita coisa nova e a ser bastante “pé no chão”. Aqueles que são racionais como função superior ou auxiliar são céticos.
Essas funções são consideradas como inconscientes e são essencialmente de “percepção”. O intuitivo percebe possibilidades e uma visão geral. O Sensitivo percebe detalhes, erros e riscos.

A função do pensamento é essencialmente lógico. Estou ciente das dificuldades existentes no sentido de definir o que é lógico e o que não é (devido aos diferentes pressupostos estruturais que podem ser utilizados). No entanto, em termos psicológicos, a função do pensamento existe independente de que pressupostos estruturais serão utilizados: seja com premissas Junguianas, Popperianas ou Marxistas, há o pensamento.
Um pensador tende a colocar a “razão”, o “imparcial”, acima de qualquer sentimento. Num exemplo clássico, um racional pode favorecer um inimigo em detrimento do amigo se considerar o inimigo correto no caso em questão. Permanece fiel aos próprios critérios do que seja o mais razoável independente de qualquer sentimento pessoal. Os racionais são freqüentemente definidos como frios.

A função do sentimento é essencialmente “moral”. Noutras palavras, é responsável pelo processo de valoração. De um modo geral, o indivíduo que possui o sentimento como função principal tende a colocar seus valores e as pessoas que ama antes de tudo. Rígidos em relação aos valores morais mesmo que sejam inconsistentes e irracionais, os sentimentais são geralmente muito devotados. No exemplo utilizado acima, defendem o amigo a despeito do fato de que ele está errado. De um modo geral, os sentimentais não são considerados os tipos mais inteligentes, mas certamente são os mais agradáveis e sociáveis, de maneira que, no meio empresarial, por exemplo, podem ter muito mais sucesso do que o mais afiado racional.
Inclusive, isso algo colocado por Daniel Goleman em seu “Social Inteligence” (Inteligência Emocional), apesar de que com objetivos questionáveis, já que muitos indivíduos preferem simular tal capacidade com objetivos egoístas que nada dizem a respeito dos sentimentais, que tendem a ser altruístas.
Esse segundo par de opostos é de funções de julgamento. Ou seja, é como o indivíduo lida com as informações recebidas através das funções de percepção. São as funções racionais.
Creio que(ao menos para os com alguma intuição) tenha ficado bem claro até que ponto essa tipologia pode ser expandida. Ela possui verdadeira plasticidade, como vou demonstrar, em comparação com o MBTI.
No modelo Myers-Briggs, um novo par de opostos é introduzido, chamado Estilo de Vida, onde são inseridas as variáveis Percieving e Judging. Basicamente, os indivíduos do tipo Judging tendem a ser organizados e apreciarem ter o controle da situação, enquanto que os do tipo Percieving tendem a deixar as coisas fluírem e se adapta a elas. Como diz a Wikipédia: “Grosseiramente um Julgador tentará controlar o mundo, enquanto um Perceptivo tentará se adaptar a ele”.
No entanto, não percebem uma falha simples: esse par de opostos é completamente desnecessário, pois tais caracteres psicológicos podem ser facilmente abstraídos de dois aspectos da tipologia Junguiana.
Em primeiro lugar, como já disse, o extrovertido molda a si mesmo segundo o mundo externo e o introvertido molda o mundo externo segundo si mesmo. Ou seja, as atitudes psicológicas são profundamente redundantes em relação ao estilo de vida.
Em segundo, há de se perceber a diferença entre dois tipos próximos:

Tipo 1

1)Sentimento
2)Intuição
3)Sensação
4)Pensameto

Tipo 2

1)Intuição
2)Sentimento
3)Pensamento
4)Sensação

Tendo em especial consideração aquilo que falei sobre a plasticidade da tipologia e que um pensador pode ter os sentimentos mais desenvolvidos do que um sentimental, vamos adiante.
O primeiro tipo possui como função superior o Sentimento, que é uma função de julgamento (judging) consciente. De um modo geral, tanto os tipos de função superior pensamento quanto os de sentimento procuram controlar as coisas, já que o juízo sobre o que é percebido tem prioridade sobre a percepção.
O segundo possui como função inferior a intuição, que é uma função irracional de percepção. A não ser que aceitemos a premissa de que a nossa percepção serve para estabelecer controle sobre a realidade, há de se presumir que o segundo exemplo tem maior tendência a se adaptar do que o primeiro. Isso porque ele percebe (da sua maneira) os acontecimentos com maior facilidade do que emite juízos sobre ele.
Assim, o par de opostos estilo de vida é desnecessário, já que a lógica na ordem das quatro funções de Jung combinada com a atitude psicológica já englobam, de maneira dinâmica(e não reducionista) todas as possibilidades de Judging/percieving.
Em linhas gerais, o MBTI não pode ser tão plástico, já que é baseado em algoritmos (nas versões digitais) ou em pontuações simples nos testes de papel. Logo, ele precisa determinar 16 tipos psicológicos e um texto para cada um deles. Ou seja, se o indivíduo é do tipo INTJ², não será levado em consideração se é a intuição ou o pensamento que ocupa o lugar de função superior. Terá que se presumir um equilíbrio entre as duas funções que é tão comum quando uma franquia do Mcdonalds instalada na Lua.
Assim, todo o dinamismo da posição Junguiana é deixado de lado em nome de um pragmatismo totalmente injustificado. Não há como avaliar uma pessoa em termos tão rígidos, e o MBTI é essencialmente assim: simples, rígido, reducionista. Noob(:p)
Além disso, há o quarto par de opostos, que chega pra compensar a grave falha do sistema reducionista e substituir a lógica da qual falei acima: que Judging são os indivíduos com funções conscientes superiores e Percieving são indivíduos com funções inconscientes superiores. Isso altera tão profundamente a profundidade e a inteligência da tipologia Junguiana que ele deve estar se revirando em seu túmulo por associarem esse absurdo ao sue pensamento.
Além disso, o MBTI é usado como guia na escolha de profissões, enquanto que o objetivo da tipologia Junguiana era auxiliar o indivíduo na compreensão de sua mente e, assim, ajudá-lo a desenvolver as funções inferiores. Basicamente, o objetivo do MBTI é exatamente o contrário daquele de Jung: enquanto um (o de Jung) é humanista e pretende auxiliar o indivíduo a desenvolver todas as suas potencialidades, o outro (MBTI) pretende apenas colocar o indivíduo no seu “lugar”, ditando a ele quais são seus talentos e que profissões pode seguir com sucesso.
Noutras palavras, pegaram um sistema plástico e profundo para a compreensão e auxílio do ser humano e o transformaram numa forma rígida que serve para aprisionar o ser humano em suas funções superiores.
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1) Tal afirmação fica bem clara para quem aceita tais premissas e pode ser excluída por quem as nega sem que a integridade do texto seja perdida. No entanto, vejo muitas evidências(que algum dia ainda trarei pro blog) de que realmente pelo menos parte desse tipo de percepção esteja conectado a alguma forma de Transcendência. E não vejo problema nenhum em chamar isso de espíritos, alienígenas, Deus, deuses. Pra mim é tão válido quando dizer que são alucinações. Nenhuma dessas afirmações é mais segura. Todas as premissas são parciais.
2) Introversão, intuição, Pensamento (Thinking) e “Julgamento”(Judging)

Um dia triste

Era disso mesmo que eu precisava. Um dia sozinho. Totalmente distante do contato humano. Sem conversas para me distrair, apenas para ficar imerso em mim mesmo. Eu sei que é triste, mas todos nós temos o direito de sofrer de vez em quanto, não?
Eu digo que sim. Que todos merecem um dia pra amaldiçoar o destino, amaldiçoar aquelas circunstâncias fora do nosso controle que nos separam do que mais desejamos. Sejam essas circunstâncias parte do seu corpo, da sua situação social, da sua localização geográfica ou qualquer coisa.
É um absurdo alguém me dizer que nesses dias eu deveria apenas sorrir! Sorrir porque, pra que?
Ora, claro que há muitas coisas boas na minha vida. Tenho amigos, e dos bons. E também tenho, parece, um espírito que vive me seguindo, como um anjo da guarda, e que me trás muito conforto e aprendizado. Tenho meios para sobreviver bem, me alimentar bem, Abrigo, respeito, um corpo em perfeitas condições de saúde.
Mas isso é a mesma coisa que dar água como consolo a um homem que tem fome!
Claro que sou grato por essas coisas, mas isso não é algo que vá me manter alegre em todos os sentidos. Porque parece que eu não sou daqui, que não sou acostumado com os limites desse mundo.
Aquela estrada me dá Náuseas. Queria poder simplesmente voar, cruzar 400 quilômetros em dez minutos. Queria poder sobreviver em qualquer lugar, sozinho ou acompanhado, desse planeta.
Mas estou preso por laços que não posso quebrar e o que mais desejo, por causa disso, está simplesmente fora do meu alcance. E às vezes eu me pego pensando em me misturar com os hábitos locais, em ter dinheiro e não permitir que algo assim aconteça de novo. Pensando em trair minhas origens e me dedicar aos objetivos mundanos, medíocres, ridículos das pessoas que pensam que isso aqui é normal.
E por mais que eu lute, e gaste minha energia em algo que provavelmente será inútil para o meu espírito, o momento já passou. Já se passaram dois momentos, e não há como mudar. Não há como voltar atrás.
Sim, eu voz declaro. Hoje é um dia triste, um dia desagradável. Claro que vou me recuperar, claro que vou ter outras chances, claro que tudo nunca acaba de verdade. Mas essa é a realidade de hoje. Não estou mais revoltado com o destino nem nada. Apenas queria um pouco mais de força para suportar as limitações dessa existência, especialmente para aquelas a respeito das quais nada posso fazer...
Money will always defeat love...

Sobre o comunismo numa sociedade alienígena



Esse post na verdade é uma prévia de um livro que estou escrevendo: Os visitantes 2.

De repente Felipe não pôde se conter e começou a falar.

- Mas me diga, como é a sua sociedade? Vocês são comunistas?
- Entendo que essa seja uma classificação local, mas não a conheço perfeitamente. Sei que se trata de uma forma de organização social, então posso explicar como é e depois você diz que é comunismo ou outra coisa. - respondi
- Certo, continue.
- Em primeiro lugar, minha civilização não troca. Essencialmente porque não há nenhuma necessidade para isso. Assim, não temos dinheiro, mercado, investimento, pobreza, escravidão e todos os outros efeitos decorrentes da escassez de recursos. Além disso, o processo de decisões é muito mais complexo do que o local, já que a expectativa de vida é maior e nossa memória é relativamente ilimitada. Assim, separamos as decisões segundo preferências: há tantas decisões a serem tomadas que é impossível uma pessoa decida em todos os casos. Mesmo que ela fique sem dormir, perderá algumas decisões, isso sem falar que não terá tempo pra pensar. Assim, cada habitante com sua cosmologia e seus valores, tomam decisões em suas áreas de preferência no momento. Algumas questões são mais polêmicas, como a possibilidade da criação de consciência, e nessa a maioria quer votar, mas há outras questões técnicas relativas às mais diversas áreas do conhecimento que são tratadas apenas por quem tem interesse no assunto. Apesar de que existem grupos separados muito por diferenças psicológicas, nenhum habitante possui necessidade de ter poder dentro da sociedade.
- Mas não é natural que o ser humano queira experimentar a sensação de poder?
- Não sei te responder. Mas nas nossas simulações há realidades virtuais de todas as naturezas, o que inclui dominação tanto de natureza sexual quanto política. E mesmo sabendo que é tudo de mentira, os jovens tendem a levar isso muito a sério. Mandam e obedecem como se realmente tivessem algum poder, quando na realidade todos sabem que um homem sozinho não é nada. Em minha opinião isso é natural nos primeiros anos da vida. Eu por exemplo, era o líder de um exército, todos obedecendo a hierarquia como se ela fosse real, pelo simples fato de que ninguém conseguia me vencer num combate corpo a corpo. Entrei em incontáveis batalhas e quase conquistei toda aquela realidade virtual antes de perceber que eu estava jogando minha vida no lixo. Há habitantes da minha idade que ainda vivem nessa. É lamentável.
- Entendo. Mas você disse que há diferenças psicológicas que separam os homens. Isso não cria conflitos?
- Conflitos ideológicos, claro, mas nunca nenhum tipo de agressão ou censura.
- Porque não?
- Olha, há diversas explicações. Há quem diga que nós somos naturalmente superiores a vocês, ou quem diga que nem existe um conflito psicológico. Eu, no entanto, creio em uma explicação que pode ser difícil de entender dentro dos seus parâmetros.
- Tente explicar.
- O que observo é que, conforme o tempo passa, um artista se torna pensador, um pensador se torna artista. Por maior que seja a quantidade de grupos diferentes, conforme o tempo passa a mente vai procurando se expandir, desenvolver-se a todo o seu potencial. Por isso os interesse artísticos, intelectuais, sentimentais e até os dos sentidos vão variando conforme o tempo passa: porque a mente quer se completar.
- Entendo. Mas me fale sobre a segunda das duas primeiras explicações que você citou. Que dizem aqueles que acreditam que não há conflitos psicológicos?
- Esses são o bundões.
- Hahahahahahah! – Roberto me olhou com um olhar surpreso
- Isso é um termo pejorativo? – perguntou Felipe dando uma risada leve
- para alguns é. Para os Bundões, no entanto, é uma honra. Na verdade esse nome não possui uma conotação normalmente pejorativa na minha linguagem.
- Mas então o que significa?
- Pra isso terei que voltar no tempo e te explicar muitas coisas. Tudo bem pra você?
- Certo, explique.
- Pois bem, depois de uma era muito parecida com a digital em que vocês vivem, chegamos na era meta-biológica, em que dominamos a tecnologia biológica em eu nível físico.
- Há um nível para além do físico? – perguntou Roberto.
- Hoje sabemos que há um nível molecular na tecnologia biológica natural do nosso corpo. Há toda uma lógica envolvendo as moléculas do corpo que muitas vezes vão para além do nível físico propriamente dito. Há quem diga que é devido a isso que ocorrem os efeitos psicossomáticos, já que conseguimos impedi-los com nossa tecnologia, mas eu tenho minhas dúvidas.
- Certo, continue. – disse Felipe
- Pois bem, ao desenvolvermos essa tecnologia, conseguimos fabricar partes do cérebro. Criamos partes para as mais diversas funções e conseguimos driblar as mais diversas formas de defesa do organismo. Inicialmente, conseguimos curar todas as doenças mentais de natureza física, mas depois essa tecnologia começou a trazer mudanças de paradigma. Começamos a criar partes cerebrais com o intuito de aumentar nossa capacidade neurológica, já que aparentemente não era possível alterar o cérebro. Os primeiros testes foram um sucesso: conseguimos criar aparatos de memória e raciocínio que se integraram ao nosso cérebro. Para falar na sua linguagem, é como se tivéssemos colocado uma calculadora e um HD adicionais no nosso cérebro.
- Vocês evoluíram! – disse Felipe eufórico
- Há quem diga que sim, mas deixe-me continuar.
- Certo, adiante.
- Isso tornou comum a todos os cidadãos a linguagem das fórmulas matemáticas, que parecia pra muitos complexa demais para ser entendida, e ajudou muito o nosso progresso intelectual em diversas áreas que exigiam grande quantidade de informação. Conseguimos, depois disso, interpretar padrões mais complexos que exigiam esforço mental extremo. No entanto, o que foi percebido é que isso não aumentava a criatividade dos indivíduos. Antes, era comum que um indivíduo que entendia bem a linguagem das fórmulas matemáticas conseguir desenvolver uma teoria nova, mas isso diminuiu drasticamente em termos estatísticos. As pessoas que só entendiam as fórmulas por causa do aumento na capacidade cerebral simplesmente não tinham idéias novas: a concepção, o avanço científico, parecia vir apenas daqueles que eram capazes de entender essa linguagem sem necessidade de usar os aparatos cerebrais.
- Mas por quê? – perguntou Roberto
- Segundo minhas fontes e minhas próprias observações, isso é porque a capacidade de processamento lógico foi aumentada, mas esses avanços possuem origem ilógica.
- Mas o que? Como?! – perguntou Felipe
- Isso ainda é pouco claro, mas nós observamos muitos indivíduos e percebemos que as idéias geniais vinham de outra área do cérebro, normalmente negligenciada por muitos. Chamavam-naela de intuição e diziam que é a função cerebral do misticismo.
- Passaram-se 15 anos em que o senso comum intelectual não aceitava tal possibilidade e simplesmente negava pelo fato de que os ditos místicos a utilizavam para trazer implicações espiritualistas. Até que um dia um homem decidiu tentar expandir essa área do cérebro com meta-biologia e perdeu o juízo. Mesmo depois que o dispositivo foi removido ele continuava sempre repetindo uma estória fantasiosa na qual havia uma guerra pela mente as pessoas, que homens de outros mundos nos manipulavam usando a força mental. Um dia ele cometeu suicídio, alegando que os alienígenas demandavam o sacrifício dele.
- Que coisa horrível! – disse Roberto. – Mas e os Bundões? Parece que você foi falando e esqueceu deles!
- Bem, é aí que eles entram. Depois desse evento muitos esqueceram a possibilidade de evoluirmos com esse avanço tecnológico, mas alguns criaram uma sofisticada teoria, segundo a qual bastaria multiplicarem devidamente o raciocínio consciente que ele se tornaria mais eficaz e exato do que aquele intuitivo, que sempre se mostrava muito nebuloso. Eles afirmavam que o avanço científico pela intuição era muito lento e que teorias novas eram pouco claras por ser esse meio de entendimento demasiadamente limitado.
- Tá, mas onde a bunda deles entra nessa história? – perguntou Felipe
- Pois bem, o que houve é que não há espaço no crânio para tal capacidade mental, então eles desenvolveram um tipo de tecido meta-cerebral que não precisa de um crânio rígido como proteção. Assim, substituíram todo o tecido adiposo das nádegas por esse tecido e criaram, efetivamente, dois novos cérebros pro corpo, um de memória e outro de raciocínio. Isso causou muita polêmica, várias piadas sobre egocentrismo, sobre ter a cabeça na bunda, e eles não reagiram. Apenas continuaram buscando provar o que diziam. Era assustadora a capacidade que eles ganharam de percepção, mobilidade motora. Foi criada uma categoria especial nos esportes porque os outros não podiam competir com eles. Aprendiam todas as disciplinas quase que instantaneamente, e o líder deles começou a desenvolver robôs capazes de executar basicamente todas as funções práticas das pessoas. Esses robôs se comportavam de forma parecida com o ser humano, com a diferença de que nunca mudavam a não ser que reprogramados. A partir desse momento, as funções que não exigiam criatividade se tornaram obsoletas e a nossa produtividade estava tão avançada que ficou decidido que eliminaríamos todo o mercado.
- Então vocês já tiveram mercado? – perguntou Felipe
- Sim. Enquanto houve escassez nós precisamos do mercado.
- Certo, mas vamos recapitular. Você começou a falar isso tudo no intuito de nos explicar sobre a opinião segundo a qual não há diferença psicológica entre os homens, certo? Ou já se perdeu desse raciocínio?
- De maneira alguma me perdi. Estou chegando lá. Se você quiser, no entanto, posso falar de outros assuntos. Entendo que você tem questões sobre sexualidade retidas.
- Como você sabe disso?
- Difícil te explicar. Entenda da seguinte maneira: os seus pensamentos causam leves modificações moleculares e assim meus robôs podem detectar aqueles que estão mais urgentemente na consciência.
- Então vocês possuem telepatia?
- Não é bem telepatia. Teoricamente essa faculdade existiria sem a necessidade dos robôs. Nós temos algo como uma pseudo-telepatia, controlada pelos dispositivos de controle dos robôs. Isso fica evidente diante do fato de que as questões que não estão na consciência são pouco claras. E ainda assim, eu não faço idéia de quantas idéias existem para além dessa que estão agregadas nela.
- como assim? – perguntou Felipe
- Acontece que sempre que pensamos algo, há algum tipo de motivação emocional ou mesmo outras idéias, e uma estrutura de linguagem, que são de alguma forma “implícitos” e que não podem ser detectados por estarem numa forma em que, muitas vezes, nem a própria pessoa entende. Apesar de que hoje em dia há uma grande controvérsia sobre isso, pois os Bundões declaram ter entendido a essa estrutura completamente e dizem que ela é apenas muito complexa para ser compreendida sem o cérebro adicional. Particularmente, eu não acredito nisso, porque eles não percebem a estrutura deficiente do próprio pensamento. Agora sim cheguei ao ponto de antes.
- Nossa, isso é tão... incrível... – disse Felipe
- Pois bem, a tese que eles sustentam é a de que há apenas pessoas em diferentes estágios de desenvolvimento cerebral e que, portanto, naturalmente todos nós acabaremos mudando o nosso pensamento em direção ao deles quando “evoluirmos”.
- Mas que presunção ridícula! – disse Roberto – Será que eles não percebem que isso é um absurdo?
- Mas como você pode saber? – disse Felipe. – Não é obvio que esses indivíduos possuem um enorme conhecimento, que excede em muito o nosso?
- Pode até ser, mas isso se chama racionalização.  Essa afirmação é simplesmente ousada demais, isso é inflação do Ego!
- O que você nos diz, Matias? – perguntou Felipe
- Eu vou parafraseando um bom amigo meu, o místico do novo mundo: “Parecem uma criança que construiu asas e tentou voar até o arco-íris em busca do tesouro que nunca encontrará.”. Eles pensam que vão mostrar a todos que não existe nada irracional porque não suportam a idéia de que sua fantasia racionalista esteja errada. O mais ridículo são os argumentos obviamente Ad Hoc que eles usam para justificar os fatos que contradizem essas premissas diretamente.
- Mas que fatos são esses? - perguntou Roberto
- Bem, eis alguns. Os anciãos, que possuem mais conhecimento e experiência, simplesmente não apóiam isso. Em resposta, eles dizem que esse argumento é um apelo à autoridade e que os anciãos estão apegados à tradições mortas. Esse argumento não é completamente destituído de sentido, mas eu aprendi a respeitar esses anciãos por seus conhecimentos e já vi diversas evidências de que eles conhecem algum tipo de realidade superior que não nos exibem porque falta em nós a maturidade para entender.
- Certo, então nesse ponto é possível aceitar o ponto deles. Estaríamos num impasse, certo? – perguntou Felipe
- Estaríamos se as evidências psicológicas não fossem tão absurdamente contrárias a essas proposições.
- Como assim? – perguntou Roberto
- Muitos desses pensadores abandonam o grupo e começam a ter vivências irracionais, se tornam músicos, escritores, poetas. Até místicos! E muitos artistas se tornam pensadores, e parece que o tempo todo nós vamos mudando entre a posição deles e outras dos mais diversos tipos. De forma alguma nós ascendemos entre um grau mínimo, o mais distante do deles possível, e um grau máximo, o deles. E parece regra que quando os homens chegam na idade dos 150 anos essas questões são abandonadas. Somente o filho do sábio insiste nisso depois dessa idade. Antes, a mim parece que nós vamos caminhando pelos mais diversos tipos de vivências até alcançarmos uma espécie de maturidade mental, que exige tanto a vivência do que é lógico quanto daquilo que irracional, ilógico, sem sentido.
- ora, primeiro que você repetiu o apelo à autoridade no meio do seu argumento. E segundo, que respostas eles dão a esse argumento? – disse Felipe
- Apesar de todos concordarem que o argumento é “furado”, há basicamente duas posições diferentes. A primeira, sustentada por pensadores que nunca foram artistas, é que o argumento é simplesmente falso por causa da ausência de material empírico. A segunda, sustentada pelos pensadores que já foram artistas, é a de que a mente procura sim se desenvolver, mas as outras faculdades não se envolvem com o saber e que, portanto, os argumentos dos pensadores são razoáveis quando isso envolve a evolução do pensamento. Daí, como o pensamento e o conhecimento são a coisa mais importante que existem, a posição dos pensadores fica justificada.
- Em resposta a isso, o que você diz? – perguntou Felipe
- Contra o primeiro argumento, que é uma falha epistemológica. Eles simplesmente imaginam que encontraram os critérios corretos para a observação dos fenômenos quando não fazem nada além de projetar nos fenômenos uma necessidade psicológica de coerência. Assim, tendo eles determinado o que pode e o que não pode ser um fato de maneira ilegítima, jamais poderiam perceber esse fenômeno, porque entra em contradição com sua visão estreita de mundo.
- Mas e a resposta dos que já foram artistas? Não parece razoável? – Perguntou Roberto.
- Primeiro que eles começam com a premissa de que o conhecimento é a coisa mais importante que existe. Pra mim, isso simplesmente não é verdade, porque considero o amor mais importante. Depois, eles presumem que é somente através de meio lógicos e racionais que podemos alcançar o conhecimento, sendo que isso não foi comprovado até hoje. Claro que eles não podem negar sua antiga natureza de artistas, então dão algum lugar à existência do argumento no qual eu creio, mas distorcem tudo de maneira tão grosseira que parece que nunca foram artistas. Toda a sua obra, a qual se dedicaram com tanto prazer, abandonam, e parece que jogam a criatividade no ralo para absorver informações ao infinito através dos bundões recém adquiridos. E por incrível que pareça eu considero isso válido como um período do desenvolvimento psicológico: desenvolver o pensamento e a consciência. Apenas não apoio a unilateralidade deles, só isso.
- Mas há algum argumento contra eles? – perguntou Roberto
- Bem, há a psicossomática.
- Como assim? – perguntou Felipe
- Acontece que eles precisam estar continuamente combatendo efeitos psicossomáticos e até hoje não encontraram a formula segundo a qual podem evitar isso que consideram um efeito colateral dos outros centros neurológicos. Na verdade hão há evidência, em nível molecular ou biológico, de que há algum conflito entre os dispositivos e o cérebro original. Antes, parece que isso está comprovando uma teoria que eles não aceitam: que é precisamente a unilateralidade da mente e a insistência numa forma de vida ilegítima que causa uma reação da mente. Assim, eles precisam constantemente compensar aquela sensação de vazio e os efeitos psicossomáticos com os robôs.
- Você está dizendo que a mente, de alguma maneira, não aceita a atitude deles? – perguntou Roberto
- Mais ou menos. Não que considere a atitude deles errada. Apenas a considera muito estreita. Para você entender por analogia, analise o sistema de homeostase do corpo. Através de diversos meios naturais o corpo busca manter um equilíbrio dinâmico e se adaptar a diferentes tipos de ambientes. Assim também é a mente, em suas diferentes funções: procura manter um equilíbrio. Mas esse sistema de equilíbrio da mente demora muito pra se formar e é mais complexo. Assim, da mesma forma que o corpo exibe sinais de deficiência vitamínica de diversas maneiras, também a mente exibe sinais psíquicos e psicossomáticos da falta de equilíbrio psicológico. Dessa maneira, a mente procura se regular por seus meios naturais e eles usam a tecnologia para impedir: eles cortam todos os possíveis sintomas da mente e, assim, continuam insistindo nisso. Um amigo meu, que já foi pensador, disse que ainda sobre uma ânsia por algo mais, que eles interpretam como ânsia por mais conhecimento, mas que ele só viu satisfeita quando se casou e começou compor músicas. Enfim, fomos muito longe nesse assunto e seria sensato, agora, tratarmos da questão a sexualidade que, a despeito de tudo o que falei, ainda está na mente de Felipe.

E se tivesse dado errado?


Entrei dentro do ônibus. Como esperava, fiquei de pé, com aquela porra de mochila pesada. Pelo menos fiquei num ponto fixo. Às vezes ficam tão lotados que você fica no meio do corredor, entre outras pessoas. Naquela posição, pelo menos, dava pra alguém segurar minha mochila. Quase sempre tem uma alma caridosa.
Dessa vez foi diferente: demoraram meia hora pra me oferecer, e isso só foi por causa da minha técnica de coloca a mochila pra frente só com uma alça, dando a ela a possibilidade de balançar e quase acertar a cara de quem está sentado. Sempre funciona.
Dentro do ônibus é sempre o mesmo tédio: várias pessoas que ficam se olhando, daí quando a outra percebe e olha de volta, fingem que não estavam olhando. Uns fecham os olhos, outros fingem que tem algo mais ou menos na mesma direção. Os mais amadores viram a cara rapidamente.
Lembrei do dia que passei. Não me lembro de outro dia em que tanta coisa tenha dado certo de uma vez só. Cheguei na data certa, no horário certo sem saber. Resolvi tudo que havia para ser resolvido.
Como sempre, comecei a imaginar, e rever detalhes que poderiam ter dado errado.
Na inscrição do Sisu parece que houve um erro e muita gente recebeu um parabéns enganoso. Não foi o meu caso, mas e se fosse? Eu nem tinha impresso o papel como a menina que estava lá. Tava fodido, não conseguiria provar que me enganaram. Mas nem enganar, enganaram: o sistema falhou e foi só isso. Eu teria que pagar a porra da faculdade particular e não poderia continuar minha pesquisa. Pelo menos tinha uma criatura deliciosa naquela turma de faculdade. Pra ser honesto, não lembro de ter visto diante de mim uma garota tão linda e gostosa como aquela. Puta merda, não parece que é de verdade. Nesse ponto e tivesse dado errado eu ficaria só olhando pra ela, imaginando coisas que tenho pra falar. Pra uma aluna de psicologia? Puta merda, poderia falar pra cacete. Se eu não fosse travado, na verdade, imagino que teria chances. Quem sabe se, por força maior, como já aconteceu antes, eu não travasse. Nesse caso, só pelo olhar dela, pelo comportamento e pelo teor da pergunta que ela fez ao professor, eu manipularia a mente dela com tamanha facilidade que minha satisfação estaria garantida. Quem sabe eu até me apaixonaria por ela? Mas, no final das contas, eu queria mesmo é entrar nela. Acima de tudo.
Só que deu certo, e a gostosa/linda já era. Aliás, conheci outra gostosa quando estava fazendo inscrição. Vai fazer jornalismo e tem mesmo pinta de jornalista. Gostosinha, loirinha, estilo Barbie. Puta merda, espero que ela nunca leia isso. Mas certamente me imaginei entrando nela, e com direito a fetiche da profissão e tudo. Foi quando eu descobri que existe fetiche de jornalista. Imagina eu comendo a Padrão?! Imagino demais.
Eu precisava tirar cópias de um documento e ele tinha sumido. Fui descobrir que ele estava na minha mochila. Era um certificado da biblioteca que eu havia pegado pra poder cancelar a matrícula na faculdade particular.
Imagina se eu tivesse perdido essa merda? Cacete, demorei duas horas pra ser atendido, daí sem esse documento a mulher me mandaria na biblioteca buscar. Daí quando eu estivesse de volta, a porra da secretaria estaria fechada. Por um dia a mais eu teria que pagar a mensalidade, que vencia naquele dia mesmo. Aliás, cheguei 7 e o negócio fechava 9. Se eu chegasse 7:30 já era. Mas cheguei na hora certa e no dia certo. Não paguei nada e me dei bem.
Daí tinha o ônibus da faculdade. Saí da secretaria com a matrícula cancelada as 9 e o ônibus era só 11. Só que às vezes acontecia de o pessoal sair mais cedo. Eles combinavam com todo mundo que vinha nele. Como eu fui na outra faculdade de manhã, não vim nele, e o pessoal podia ter combinado de ir sem mim.
Fui até o ponto, comprei um podrão x-tudo e comecei a imaginar.
E se eu perder o ônibus?
Ia ficar perdido em rio comprido, na porta de uma universidade dentro da qual dava pra ver tiro voando de noite, como uma pequena faísca cruzando o céu. Não tava com grana pra ir pra casa, tampouco estava em horário pra ir longe o bastante para chegar na casa do parente mais próximo. Não tinha como dormir na rua, porque é perigoso demais. É como um macaco dormindo no chão, ao invés de num galho lá no alto. Único lugar acessível era a General Canabarro. Eu pega a são Francisco Xavier e chegava lá. Na casa dela.
Já faz quase dois anos que não nos falamos. Isso porque eu sou um egocêntrico, manipulador e filho da puta. Se bem que a situação é mais complexa do que coisa de vilão e vítima, mas que se dane: a prática é que o pessoal de lá me detesta.
Teria como eu me virar no dia seguinte, lá pra 5 da manhã, então quem sabe ela deixaria eu dormir num banco que fica no pátio do prédio dela?
Voei pra lá enquanto comia meu podrão (caro e que demorou pra sair).

- que você ta fazendo aqui? – perguntou ela.

Ela tava com aquele mesmo pijama da época em que eu passava dias nessa casa. Ele já era velho, e provavelmente hoje já nem existe mais. Só que não sei qual é o pijama dela hoje, tampouco se a aparência dela é a mesma de então. Depois fui descobrir que o cabelo dela agora é preto, mas naquela noite eu não sabia, então ele me veio com luzes. Eu sempre quis que fosse preto, mas ela nunca ligou. Enfim, depois de enrolar, respondi.

- Eu preciso de ajuda.
- porra, já são meia noite e você vem na minha casa? Porra, vai embora.
- Esse é o problema. Não tenho pra onde ir. Preciso de um lugar pra passar a noite.
- Não te falei que minha mãe não te deixa subir nem pintado de ouro?
- É só pra eu não dormir na rua. EU fico ali do lado, naquele pátio. Tem um banco ali. Eu nem vou dormir mesmo.

Pensei que ela estava pronta pra se vingar de todo o aborrecimento que eu já trouxe pra ela. Como eu fiz tudo de uma vez só, num pequeno instante trouxe todo o aborrecimento, ela poderia revidar naquela noite, me fazendo dormir ali pra ser assaltado e me foder. Mas ela abriu o portão. Quer dizer, ela falou com o porteiro e ele abriu o portão.
Entrar naquele lugar, por mais tenha sido minha imaginação, me causou uma impressão profunda. Eu terminei meu podrão, mas continuei ali imaginando.

- Como ta sua garganta?
- Ah, ta melhor.
- e teu tornozelo?
- eu to bem.
- Ah.

Ela não ia cair no mesmo truque duas vezes. Antigamente eu usava minha preocupação pra sensibilizar ela. Tudo bem que eu me preocupava mesmo, mas eu sabia trazer a devida recompensa pra minha preocupação. Naquela noite ela estava diferente. Permaneceu imune à minha preocupação, mas ficou ali sentada no banco, com as pernas de fora no frio.

- Você não tá com frio? – perguntei
- Porque você fez aquilo? – ela me fez a pergunta ignorando minha fala.

Eu olhei pra cima, pra varanda da casa dela. Eu gostava daquela varanda. Uma vez eu vi dois pombos transando dali. Coisa sem graça, coitado do pombo. Fica correndo a vida toda atrás da parceira e não faz quase nada com ela.

- É tão difícil assim de responder?

Eu dei uma risada e o cara do podrão ficou me olhando. Porra, até dentro da minha própria imaginação eu saio de foco pra imaginar dentro do imaginário!

- Eu fiz aquilo porque eu sou um narcisista. – respondi com segurança
- Como assim?
- Eu não sei quem é você, Paula. Nunca soube. Eu inventei uma Paula e queria que você fosse ela. Como você não era, a despeito de todo o meu esforço e até mesmo a minha manipulação, eu me revoltei.
- Pera aí, você me manipulava? Seu cretino!
- Se serve de alguma coisa, naquela época eu nem percebia. Eu só fazia de tudo que estava no meu alcance pra “despertar” em você aquilo que eu imaginava e queria. Isso incluía te induzir a certas opiniões e tudo mais. Na verdade eu achava que estava te despertando, mas estava é te manipulando. E em diversos aspectos você reagiu e mostrou quem realmente era. Isso que me frustrou: foi minha cegueira em não conseguir te ver.
- Você é um idiota.
- Eu sei. Ainda posso ficar aqui?
- Fica aí se quiser. Boa noite.

Ela subiu com aqueles passos que ela dá quando fica aborrecida. Como que pisando no chão para feri-lo e com a cabeça um pouco inclinada pra cima. Eu sempre ficava achando que ela ia ferrar o pé quando andava assim. Mania de achar que ela é feito de vidro fino, na época.
Deitei no banco e tentei olhar pras estrelas, mas as lâmpadas dali não deixavam. Da varanda dela dava pra ver.
Fechei os olhos, daí, quando eu abri, ela estava sentada na varanda me olhando. Quando ela percebeu que eu estava olhando, entrou e fechou o vidro.
Nesse momento, por causa do meu fone de ouvido, não percebi uma moto passando. Quase me atropelou. Um susto do cacete.
Fiquei imaginando se eu fosse atropelado. Tava fodido. Provavelmente eu morreria ali mesmo e ninguém reconheceria meu corpo. Iam pegar meu celular e ligar pra minha mãe pra avisar que morri. Eu deixaria uns livros interminados um punhado de amigos e uma vaga preenchida na faculdade federal. Todo esse esforço pra construir a porra da tese pra ser atropelado por uma moto e morrer.
Bem, se eu ficasse paralítico pelo menos eu não deixaria de fazer o trabalho. A não ser que ficasse com a mão incapacitada, como aquela mulher da novela.
Revi minha idéia sobre a consolidação de uma ideologia. Pensei nos textos de uma amigo meu sobre o estímulo financeiro dado aos autores do neo-liberalismo.
Iguais ao Freud, que construiu um império e não um conjunto de idéias. Eu não poderia usar o nome psicanálise no trabalho. Decidi ali usar o nome psicologia do Inconsciente, porque bem sei que Jung e Fromm, que vão ser os principais autores na obra, não são propriamente psicanalistas no sentido Freudiano do termo.
Lembrei das influência de Jung, com Flornoy e Janet, que os freudianos ignoram pra dizer que Jung foi um seguidor de Freud, e não um colaborador. Bando de noobs.
Quando entrei no ônibus, quis imaginar como seria se ele quebrasse, mas acabei dormindo.

Uma noite triste

 
 
Ah, quantas idéias estavam na minha mente! Eu estava eufórico, tinha que contar a alguém. Só poderia expor tais descobertas a um amigo e a ela. Ele, no entanto, estava excessivamente ocupado pelo fim de semana com uma viagem. Terminei meu trabalho mais cedo e, pela primeira vez, segui o hábito dos outros de sair uma hora mais cedo nesse dia. Se perguntarem, fui ao médico.
Peguei o carro e a rua não estava engarrafada. Talvez porque eu saí antes do horário do rush. Eu normalmente saio as 6 pra chegar em casa as 6. Nesse dia, saí às 4 e cheguei ás 4:30.
Passei na padaria, comprei uns doces que ela gosta, mas nunca come pra não engordar. Naquele momento minha mente já estava mais calma, mas eu sempre fui de me acalmar fácil. Enquanto falo de algo assim, minha euforia retorna. É normal.
Entrei em casa, como sempre, em silêncio. Fui ajudado por um vizinho nos fundos de casa com um funk no último volume e o vizinho do lado, como que reagindo, com heavy metal. Pensei em sair daquela casa, já que ambos os sons deviam estar incomodando ela profundamente.
Cheguei na cozinha e vi ela nos fundos. Fiz silêncio pra dar um susto nela, mas aí percebi o Jean ali. Eu soube que no dia do meu casamento com ela esse sujeito tentou se matar. Preferi não interferir, dar a ele a chance de falar o que sente. Afinal, talvez fosse bom pra ele.

- Jean, eu não te disse que acabou? – disse ela

Fiquei curioso, porque, segundo eu soube, nada nunca havia começado.

- Eu li livros de auto-ajuda e nem eles me ajudaram. Na verdade um me deprimiu ainda mais com aquele papo de que certas pessoas estão destinadas a se unir. Eu fui no psicólogo e ele disse pra eu deixar sair o que eu sentia. Só to fazendo isso. Eu te amo.

Houve um período de pelo menos 30 segundos de silêncio. Não pude ouvir nada por causa da música.

- Eu estou casada. Você sabe muito bem que com esse seu vício de bebida não tinha como.
- Vício? Eu parei de beber depois que aquele crente me salvou. Nunca mais bebi nada alcoolico.
- Que bom, fico feliz por você.
- Para com essa atuação piegas que eu sei o que você sente.
- haha. Você é a única pessoa que eu conheço que diz “piegas”.

Eu vi com os meus próprios olhos um beijo. Imóvel, firme e silencioso no começo. Eles se entrosaram, logo estavam abraçados. Derrubei um copo por acidente ou talvez um ato falho para aquilo acabar. Ouviram, mas rapidamente voltaram um ao outro. Estavam como que liberando uma besta retida já a muito tempo.
Eu fiquei sem ação. Não sabia se corria, se ficava, se gritava, se calava. Acabou que assisti em silêncio até o ponto em que ele a levantou na máquina de lavar e se enfiou entre as pernas dela. Ainda hoje sou apegado demais para conseguir assistir a uma cena dessas.
Fui até o quarto e fiquei chorando por alguns minutos. Eu não sabia o que fazer. Não era leviandade, não era só sexo. A mentira era muito maior. Eu pensava que o coração dela era meu, mas nunca foi. Ela provavelmente só me considerou mais adequado por eu ser um bom amigo. Não sei.
Mas a polícia chegou lá e a música parou. Dava pra ouvir o suspiro dela sem a música. Nunca pareceu sentir tanto prazer assim comigo. Eles dizem que o orgasmo da mulher é muito relacionado à paixão que ela sente. Talvez seja isso ou eu só seja ruim de cama mesmo.
Eu arrumei minhas coisas de qualquer jeito. Nunca fui de querer muita coisa e foi ela que comprou quase tudo na casa. Só levei meu computador, as roupas e os principais livros. Eu tinha que levar minha idéia adiante, aquilo era importante. Mas agora eu me pergunto como eu consegui pensar nisso naquela situação. Eu chorava carregando as pilhas de livros. Acho que enrolei pra encher o carro com as minhas coisas na esperança de ser interrompido. Foi uma esperança idiota: só ouvi eles transando até terminar.
Sentei na mesa do computador pra escrever uma carta de despedida. Escrevi algumas bobagens sem sentido e fui amassando e colocando no bolso.
No final, acabou saindo só uma palavra e em inglês, como se no fundo eu esperasse que ela não entendesse de princípio.
Farewell: vá bem, fique em paz, Adeus.
Minha aliança ficou junto com o pedaço de papel e minha cópia da chave da casa.
Quando eu saí o carro demorou pra ligar. Tinha que trocar a bateria ou algo assim. Isso acabou interrompendo os gemidos e eu vi. Eu juro que vi ela coberta com um lençol e com o cabelo bagunçado me olhando pelo retrovisor enquanto eu saia.

- Essa sim, meu amigo, foi uma noite triste. – Disse eu no bar pro velho

Ergui o copo e enchi novamente com vodka.

E bebi até cair com o velho surdo...

Acerca do “sine qua non” do estabelecimento de uma forma de pensar



Abandonei esse blog por uma série de razões, dentre as quais apenas uma eu considero relevante pro momento. Imaginei que não havia leitores e que, portanto, eu deveria buscar outros meios de comunicação, especialmente interpessoal em fóruns.
No entanto, porque uma pessoa pareceu interessada em continuar lendo as besteiras que escrevo aqui, decidi produzir mais uma de minhas racionalizações.
Aqui, falarei do elemento psicológico básico através do qual uma forma de pensamento se estabelece.
Logo adianto aos mais ingênuos que esse elemento não é a razão, não é a verdade e, tampouco, uma soma de ferramentas de manipulação.
Isso porque a razão em si é um conceito nebuloso e guiado por critérios. Esses critérios variam entre os indivíduos e, portanto, acabam surgindo diversos conceitos do que vem à ser a própria racionalidade. Daí já é estúpido alguém dizer que fulano está com a razão e seu oponente não: porque ambos estão com a própria razão e se não possuem critérios próximos jamais poderão chegar a um acordo obre coisa alguma. Como não há um critério racional que esteja acima dos demais e que, assim, possa regular e explicar a todos, não podemos presumir que a razão é o Sine qua non. Antes, é uma ferramenta tão eficaz quando a manipulação, propaganda, etc. que atinge um certo grupo de indivíduos e nada mais.
A verdade é um termo absurdo. A suposição ingênua de que, através da razão, encontraremos a verdade é completamente egocêntrica. Isso porque, em primeiro lugar, se presume que só existe um critério real para guiar a razão, e, em segundo, porque se presume que só há uma “verdade” a qual poderíamos chegar dentro desses critérios. Como já disse, é possível selecionar diferentes premissas de pensamento que são, em si, irracionais (não podem ser provadas ou refutadas e são aceitas como auto-evidentes quando na verdade não são.). Além disso, mesmo dentro de certas premissas, é possível o indivíduo entrar em contato com N elementos empíricos e, através deles, chegar a diferentes “verdades”, não havendo, portanto, nenhum motivo para que se torne legítima a afirmação de uma “verdade”.
Mas meu objetivo aqui não é falar o que não é.  O que pretendo é determinar a principal razão pela qual uma forma de pensar se estabelece.
Mas o que quero dizer como uma forma de pensar?
É simples. Falo de um conjunto de premissas que orientam ações e pensamentos aceitos por um grupo e pessoas diferentes entre si.
Para isso, vou recorrer ao pensamento cristão. Para quem está familiarizado com o blog e sabe que já critiquei a estrutura do pensamento cristão, se preparem pra uma surpresa. Segundo certas premissas, estarei, aqui, usando o cristianismo como um exemplo “positivo” até certo ponto. Provavelmente esse texto poderá refutar um argumento comum entre os cristãos, que usa Deus para explicar a razão pela qual essa religião se multiplicou. No entanto, também refuta uma afirmação minha, de que o cristianismo se reproduziu por ser um tipo eficaz e bem elaborado de praga.
Atualmente há o ateísmo, com suas próprias premissas com uma própria cosmologia plural (até certo ponto), mas no passado não existia e as pessoas não se sentiam revoltadas por isso.
Aquino e Agostinho trouxeram as perspectivas Aristotélica e Platônica para o cristianismo, e diversos subgrupos se formaram dentro desse. Alguns acreditavam que a ceia era um símbolo de cristo, outros que era efetivamente a carne e o sangue dele. Alguns acreditavam que Jesus era possuidor de suas vestes e outros que não. Claro que todos dentro da premissa de que Deus existe, Jesus é seu filho, etc., mas havia uma enorme variedade. Mente quem sai por aí dizendo que era proibido pensar na idade média. Ficam imaginando que as pessoas daquela época pensavam como as de hoje, que vão além das premissas cristãs (devo lembrar que falo da Europa?).
Mas a verdade é que o homem da época do cristianismo não pensava como o moderno, não lia Richard Dawkins e possuía uma ciência bem conformada dentro dos padrões da teologia. Na verdade, na época eles recorriam com freqüência à Deus como hipótese.
Gostam de usar o julgamento de Galileu como exemplo, mas a verdade é que, segundo o paradigma da época, ele estava refutado. Além disso, ele não tinha nenhuma evidência para o que dizia que não seu telescópio questionável e sua imaginação.
Mas voltando ao assunto, porque é que o cristianismo se firmou como uma forma de pensar dominante? É bem simples: porque não havia um topo, alguém pra decidir por último o que era verdade. Havia diversas formas de se pensar dentro do cristianismo, e os indivíduos conflitavam seu pensar dentro dessas premissas. Não só isso: havia espaço para uma enorme variedade de tipos psicológicos e vivências. O pensamento cristão se multiplicou porque permitiu que as pessoas manifestassem as mais diferentes características do homem na época, não porque as moldou.
Quando Agostinho e Aquino trouxeram o pensamento dos gregos para o cristianismo, isso permitiu que essas formas de pensar o mundo existissem dentro do cristianismo e que, assim, o cristianismo englobasse dentro de si os tipos mais diferentes de pessoas.
Apesar das diferenças culturais, das diferenças psicológicas e até as políticas, o cristianismo conseguia englobar todo o pensamento europeu daquela época.
Até que, é claro, o pensamento quebrou as barreiras do cristianismo, e esse não acompanhou tão rapidamente as mudanças. Claro que hoje há cristãos evolucionistas, mas certamente o cristianismo não possui mais a força hegemônica de antes.
Isso porque atualmente não há mais como se formarem pensamentos. Temos internet e diversos meios de comunicação que não podem ser controlados apenas por um grupo com uma forma de pensar. Tem tanto a sabermos, tanto para pesquisar, que dificilmente alguma ideologia conseguirá quebrar a barreira de todas as outras.
É sempre ingênuo, no nosso tempo, falar de uma forma de pensar ortodoxa na sociedade, porque parece que a cada canto que você vá, acaba encontrando alguém que pensa diferente.
No entanto, aquilo que deu força ao cristianismo pode dar força a outras formas de pensar.
Temos como exemplo a psicologia do Inconsciente (de Freud, Jung, Reich e outros) e o Marxismo.
Em ambos os casos, as premissas básicas de pensamento se multiplicaram e foram interpretadas de diversas maneiras. Dentro da psicologia do Inconsciente (e não da psicanálise, porque nessa Freud tratou de expulsar alguns que pensavam diferente) o pensamento se multiplicou para a arte, para a concepção de sociedade e diversos aspectos da vida humana. Não só isso, como, em cada um desses aspectos, sob diversas perspectivas. O pensar em psicologia do inconsciente se tornou amplo e, portanto, acabou se difundindo.
No marxismo é a mesma coisa. Há vários “marxismos” diferentes, que apresentam diversas perspectivas e relação com diversas áreas da vivência humana. Interessante, aliás, que muitos marxistas também são pensadores da psicanálise.
É isso e não razão ou a “veracidade” que torna uma forma de pensamento difundida.
O que nos leva à conclusão desse texto, que volta até os grupos revolucionários. Esses, no presente, costumam pensar que basta eles difundirem uma idéia. Pensam que as pessoas não pensam como eles porque ainda não os ouviu falar e que vão efetivamente mudar o mundo através do trabalho de difusão de idéias.
Ora, aí está o elemento da propaganda, que pode também envolver a transmissão de informações com técnicas de manipulação. Essas técnicas variam de estímulos ao Inconsciente à tentativas de atingir o sentimento do interlocutor com trilhas sonoras tocantes e imagens de impacto. Seja qual for a tática de manipulação, ela se anula pela multiplicidade das idéias na sociedade em si. Afinal, na presença de propagandas contrárias vindas de todos os lados deve haver algum critério interno de seleção. Senão nosso cérebro fritaria tentando processar tudo.
Daí decorre que de nada adianta ser um devoto e divulgar uma forma de pensamento se ela não é ampla o bastante. Também de nada adianta manipular, usar sua razão ou afirmar que se trata da verdade.
Na verdade, até mesmo quebrar a barreira lingüística é difícil: com freqüência falamos de coisas idênticas na forma de pensamento, mas expressamos com termos diferentes. Cada um entende os termos do outro de maneira diversa e acabam pensando que discordam quando na verdade uma “previsão” baseada em ambas as formas de pensar seria idêntica.
Não adianta mais pregar, não adianta mais achar que o mundo será mudado por um conjunto de idéias. Pelo contrário, é precisamente a variedade que torna o mundo mais humano. Porque por mais que um indivíduo seja Outsider, por mais que seja estranho, algo há nessa sociedade que seja adequado a ele. Não há como uma pessoa ser completamente estranha ao mundo.
Antes, se alguém conseguir estabelecer um meio de pensar hegemônico, todos se tornarão robôs, com uma intuição íntima de que algo muito errado se passa e uma sensação irreparável de completo desajuste.
Para uma ideologia nova se difundir e ser capaz de lidar com a variabilidade do ser humano, então, é necessário que não existam líderes. Exatamente isso. Porque jamais pode a visão de um homem apenas ser ampla para guiar um grupo quando ele se tornar suficientemente grande. A não ser que seja um grupo religioso. Nesse caso, no entanto, ao invés de emancipar a humanidade estaríamos trabalhando para restringir sua liberdade.
Não se pode pensar que um homem é inteligente o bastante para guiar um grupo grande, porque a quantidade de pessoas diferentes nesse grupo exige que o pensamento grupal englobe isso tudo. De outra maneira, grupo se torna uma massa e os membros perdem a autonomia. Tornam-se autômatos.
Antes, se houver diversos pensadores dentro da linha geral do grupo apresentando diversas perspectivas para entender as atividades do grupo, ele terá plasticidade para aceitar em si uma grande variedade de pessoas. Assim, o grupo pode ganhar um volume considerável e, sob diversos níveis, efetivamente mudar o mundo. Não quer dizer que transformarão o mundo num paraíso idealizado. Até porque, dentro do grupo certamente haveria divergências demais para isso. Mas certamente as linhas gerais do grupo se tornariam mais influentes.
Para isso, poderíamos pensar no Movimento Zeitgeist. Segundo fui informado, o movimento já possui meio milhão de membros por todo o mundo, mas a variedade interna é pequena.
Como linhas gerais desse movimento, vi as premissas de “mudança constante” e união. E aceito essas premissas, pois se adéquam à minha realidade psicológica.
No entanto, apesar de essas premissas serem bem amplas, as idéias apresentadas no movimento são estreitas. Com fixação pela forma comportamentalista de entender a mente humana, criam um “plano de ação” baseado apenas nela. Dizem que Jacques Fresco é um grande gênio, autodidata que já estudou as mais diversas disciplinas, mas não vejo nenhuma genialidade nessa cosmovisão limitada da psicologia dentro do movimento. Antes, há psicologias. Diversas perspectivas, muitas das quais eu conheço só de ouvir falar (de ler em livros de introdução à psicologia), e bem interessantes que tratam de fatos não observados na perspectiva comportamentalista acerca do ser humano.
O movimento é baseado num projeto, que lida com o ser humano apenas com a perspectiva comportamentalista e imagina que os seres humanos serão simplesmente condicionados a não serem destrutivos pelo meio. Dentro dessa cosmovisão, colocam que não será necessário haver leis ou política.
Ora, isso é completamente absurdo. Dizer que o ser humano não precisa de leis implica encerrar a discussão sobre o comportamento humano. Não sei de alguém que seja capaz de fazer isso. Sobre não haver política, nesse caso haveria totalitarismo. Dizem que as decisões seriam tomadas com base no método científico, mas, como Feyerabend aponta,

“O chauvinismo da ciência é um problema muito maior do que o problema da poluição intelectual. Pode até ser uma de suas maiores causas. Os cientistas nãos e dão por satisfeitos em organizar seus próprios cercadinhos de acordo com o que consideram ser as regras do método científico, mas querem universalizar essas regras, querem que ela se torne parte da sociedade em geral e usam de todos os meios à sua disposição – argumento, propaganda, táticas de pressão, intimidação, práticas de lobby – para atingir seus objetivos.”

Para mais além, pretendem que esse método seja acrescentado a um computador, responsável pelas decisões.
Com isso, eliminam a possibilidade do pensamento amplo, da integração da variedade humana. Para alguém ser ajustado nesse sistema, precisa acreditar no que eles dizem ser o método científico e também na concepção de psicologia deles, segundo a qual não haveria criminalidade sem a estratificação social.
Além disso, apresentam uma sociedade sem moeda corrente, o que já limita drasticamente as possibilidades para aqueles que aceitam os mais diversos tipos de monetarismo. Eles simplesmente presumem que o ser humano só usa o dinheiro como instrumento para lidar com a escassez e que, sem ela, não haveria necessidade de uma moeda corrente, porque haveria recursos abundantes a todos. Esquecem, no entanto, que alguns podem simplesmente discordar disso.
Para dar um exemplo, precisamos ver que, por mais que exista abundância de energia, comida, água e materiais de construção (para moradias), ainda assim haveria muitos bens e serviços na sociedade que variam em qualidade. Além disso, certamente existiriam funções, trabalhos a serem feitos. Ora, não há porque eliminarmos o ganho material como forma de motivação. Não é porque há abundância que um indivíduo não irá querer ter os produtos de melhor qualidade se ele trabalhar por isso. E, de qualquer maneira, uma sociedade que oferecer todos os bens de serviço em troca de nenhum trabalho desestimularia os seus membros de realizar o trabalho interno necessário. Isso, é claro, se estivermos lidando com a tecnologia de hoje e não com outra, imaginária, de um futuro próximo (daqui a 50 anos, digamos). E mesmo que exista tecnologia para no libertar dos trabalhos de produção de certos bens de consumo, ainda há profissões que não podem ser executadas por robôs e não vejo razão para negar com tanta veemência o tipo material de recompensa pelo trabalho.
Querem eliminar o dinheiro pelo fato de que, através dele, homens dominam os próximos para enriquecer por meios ilícitos, mas parecem nunca ter entrado em contato com o anarquismo de posse, por exemplo, onde isso não seria possível.
Além disso, a despeito do fato de que aceitam religiosos no movimento, preferem que o pensamento religioso não seja envolvido com este. Ora, foi do taoísmo que eu tirei minha premissa de mudança constante. Por causa de uma vivência religiosa e nada mais. A outra, a da união, também tirei de outra religião. E, a despeito do fato de que o pensamento dessas religiões poderia acrescentar muito ao movimento, Joseph declara que o movimento não admite em si pensamento religioso. Mas o pensamento religioso é tão humano quanto o científico ou qualquer outro e não tem sentido abrir mão dele dentro do movimento.
E certamente não são só esses questionamentos a serem colocados dentro das premissas de mudança constante e união. Esses são só os meus. Certamente muitos pensadores, pessoas que são, em si, diferentes, possuem diversas objeções em relação às idéias de Fresco e Joseph.
No entanto, o movimento possui uma cabeça, e por isso não admite em si a diversidade.
Mesmo que consigam reunir uma comunidade de pessoas que pensem de maneira análoga e construam uma cidade-modelo, e que essa cidade gere renda e se desenvolva (o que é pouco provável), logo na segunda geração, os filhos dos pioneiros, pensarão diferente e não poderão se adaptar ao ambiente. Para isso bastaria eles terem contato com o “mundo lá fora”.
Uma ideologia que possui líderes e não variedade de pensamento está fadada a se sustentar apenas através da fé. Aí entrará em conflito com todas as outras ideologias baseadas em fé, se tornará uma convicção rígida e entrará em contradição com o próprio pressuposto de mudança constante.
Em suma, qualquer forma de pensamento, seja nova ou não, só pode se estabelecer de maneira efetiva se englobar a variedade de indivíduos. Caso contrário, será só mais uma forma de fanatismo vazio em termos de implicações práticas na mudança da sociedade e também em estímulo da criatividade e do desenvolvimento humano.