Apêndice 1
Tradução por Cezar Augusto Mortari
Tendo ouvido um de meus sermões anarquistas, o professor Wigner exclamou: “mas com certeza você não lê todos os manuscritos que as pessoas lhe enviam; você joga a maioria deles na lata de lixo”. Mas á claro que eu faço isso. “Tudo vale” não significa que eu vá ler cada artigo que tenha sido escrito – Deus me livre! -, mas significa que faço minha seleção de maneira de forma altamente individual e idiossincrática, em parte porque não me dou ao trabalho de ler o que não me interessa – e meus interesses mudam de semana a semana e mesmo de um dia para o outro – e em parte porque estou convencido de que a humanidade e até a ciência sairão lucrando se cada um se dedicar a sua própria área: um físico talvez prefira um artigo mal-escrito e parcialmente incompreensível, cheio de erros, a uma exposição cristalina porque tal artigo é uma extensão natural de sua própria pesquisa, ainda bastante desorganizada, e ele pode ter êxito bem como clareza muito antes de seu rival que jurou jamais ler uma única linha confusa (uma das qualidades da escola de Copenhague era sua habilidade em evitar decisões prematuras). Em outras ocasiões, ele talvez busque a prova mais perfeita de um princípio que está prestes a usar, a fim de não ser posto de lado na discussão do que considera ser seus resultados principais. Há, é claro, os assim chamados “pensadores” que separam sua correspondência exatamente da mesma forma, faça chuva ou faça sol, e também imitam mutuamente seus princípios de escolha – mas dificilmente os admiraremos por sua uniformidade e certamente não pensaremos que seu comportamento seja “racional”. A ciência precisa de pessoas que sejam adaptáveis e inventivas, não rígidos imitadores de padrões comportamentais estabelecidos.
No caso de instituições e organizações, como a National Science Foundation, a situação é exatamente a mesma. A fisionomia de uma organização e sua eficiência dependem de seus membros e melhoram de acordo com sua agilidade mental e emocional. Mesmo Procter na Gamble perceberam que um bando de bajuladores tem potencial competitivo inferior ao de um grupo de pessoas com opiniões incomuns, e os negócios acharam maneiras de incorporar os mais assombrosos não-conformistas em sua maquinaria. Problemas especiais surgem para fundações que distribuem dinheiro e desejam fazê-lo de maneira justa e razoável. A justiça parece exigir que a alocação de fundos seja efetuada com base em padrões que não mudam de um requerente a outro e refletem a situação intelectual nos campos e receberem apoio. Essa exigência pode ser satisfeita de maneira ad hoc sem recurso a “padrões de racionalidade” universais: qualquer associação de pessoas que seja livre tem de respeitar as ilusões de seus membros, bem como dar-lhes apoio institucional, A ilusão de racionalidade torna-se particularmente forte quando uma instituição científica opõe-se a exigências políticas. Nesse caso, uma classe de padrões é contrastada com outra classe desse tipo – o que é inteiramente legítimo: cada organização, cada partido, cada grupo religioso tem direito de defender sua forma de vida particular e todos os padrões que contém. Os cientistas, contudo, têm de ir mais longe.Tal como os defensores da Única religião Verdadeira, ou para obter resultados, e negam tal autoridade ás exigências do político. Põem-se a qualquer interferência política e mostram-se uns mais ávidos do que outros a tentar lembrar ao ouvinte, ou ao leitor, do resultado desastroso do caso Lysenko.
Ora, vimos que não passa de uma quimera a crença em um único conjunto de padrões que sempre tenha levado ao êxito, e sempre levará ao êxito. A autoridade social, no entanto, tornou-se entrementes tão esmagadora que se faz necessária uma interferência política para restaurar um desenvolvimento equilibrado. E para avaliar os efeitos de tal interferência é preciso estudar mais do que um caso não analisado. É preciso lembrar aqueles casos em que a ciência, deixada por sua própria conta, cometeu erros graves,e também não se pode esquecer as instâncias em que a interferência política realmentemelhorou a situação. Tal apresentação equilibrada da evidência pode até convencer-nos de que passou há muito o tempo de acrescentar a separação entre Estado e ciência à agora costumeira separação entre Estado e Igreja. A ciência é tão-só um dos muitos instrumentos que as pessoas inventaram para lidar com seu ambiente. Não é o único, não é infalível e tornou-se poderosa demais, atrevida demais e perigosa demais para ser deixada por sua própria conta. A seguir, algumas palavras sobre o objetivo prático que os racionalistas querem realizar com o auxílio de sua metodologia.
Os racionalistas estão preocupados com a poluição intelectual. Compartilho dessa preocupação. Livros ignorantes e incompetentes inundam o mercado, uma verborréia vazia e cheia de termos estranhos e esotéricos sustenta expressar insights profundos, “especialistas” sem cérebro, sem caráter e até mesmo sem uma pequena quantidade de temperamento intelectual, estilístico e emocional falam-nos a respeito da nossa “condição” e dos meios para melhorá-la, e não apenas pregam a nós – que talvez sejamos capazes de olhar por intermédio deles -, mas são deixados à solta entre nossas crianças e permite-se a eles arrastá-las para o interior [de] sua própria esualidez intelectual.¹ “professores” usando notas e o medo do fracasso moldam a mente dos nosso jovens até que eles tenham perdido toda a grama de imaginação que possam alguma vez ter possuído. Essa é uma situação desastrosa, que não é facilemnte corrigida. Mas não vejo como uma metodologia racionalista possa ajudar. No que me diz respeito, o primeiro e o mais urgente problema é tirar a educação das mãos dos “educadores profissionais”. As coerções de notas, competições e exames regulares devem ser eliminadas e devemos também separar o processo de aprendizagem e a preparação para uma profissão particular. Admito que negócios, religiões e profissões especiais, como a ciência, ou a prostituição, tenham direito de exigir que seus participantese/ou praticantes conformem-se a padrões que elas consideram importantes, e devam ser capazes de averiguar sua competência. Admito também que isso implica a necessidade de tipos especiais de educação que preparem um homem ou uma mulher para os “exames” correspondentes. Os padrões ensinados não precisam ser “racioanais” ou “razoáveis” em nenhum sentido, embora usualmente sejam apresentados como tais; é suficiente que sejam aceitos pelos grupos que se deseja ingressar, seja a ciência, ou os Grandes Negócios, ou A Única Religião verdadeira. Afinal de contas, em uma democracia, a “razão” tem tando direito de ser ouvida e expressacomo a “não-razão”, especialmente em vista do fato de que a “razão’ d euma pessoa é a insanidade de outra. Uma coisa, contudo, deve ser evitada a todo custo: não se deve permitir que os padrões especiais que definem assuntos especiais e profissões especiais permeiem a educação geral e não se deve fazer deles a propriedade definidora de uma “pessoa bem-educada”. A educação geral deve preparar os cidadãos para escolher entre os padrões, ou achar seu caminho em uma sociedade que contém grupos comprometidos com vários padrões, mas não deve em condição alguma subjugar a mente deles de modo que se conformem aos padrões de algum grupo particular.Os padrões serão considerados, serão discutidos, as crianças serão encorajadas a ter proficiência nos assuntos mais importantes, mas só como se proficiência em um jogo, ou seja, sem compromisso sério e sem roubar a mente de sua capacidade de jogar também outros jogos. Tendo sido preparada dessa maneira, uma pessoa jovem pode decidir devotar o restante de sua vida a uma profissão particular e pode começar a levá-kla a sério daí em diante. Esse “comprometimento” deveria ser o resultado de uma decisão consciente, com base em um conhecimento razoavelmente completo das alternativas, e não um resultado inevitável.
Tudo isso significa, é claro, que devemos impedir os cientistas de assumir[em] a educação e de ensinar como “fato” e “o único método verdadeiro”, seja lá qual for o mito do dia. A concordância com a ciência e a decisão de trabalhar de acordo com os cânones da ciência deveriam ser o resultado de exame e escolha, e não de uma forma particular de educar as crianças.
Parece-me que tal mudança na educação e, em conseqüência, de perspectiva removerá muito da poluição intelectual que os racionalistas deploram. A mudança de perspectiva deixa claro que há muitas maneiras de ordenar o mundo que nos cerca, que as restrições odiadas de um conjunto de padrões podem ser quebradas pela livre aceitação de padrões de espécie diferente, e de que não há necessidade de rejeitar toda a ordem e permitir-se ser reduzido a uma queixosa corrente de consciência. Uma sociedade que é baseada em um conjunto de regras restritivas e bem definidas, de forma que ser humano torna-se sinônimo de obedecer essas regras, força o dissidente a uma terra de ninguém sem regra nenhuma e despoja-o assim de sua razão e de sua humanidade. É o paradoxo do irracionalismo moderno que seus proponentes identificam silenciosamente o racionalismo com ordem e fala articulada, e vêem-se, assim forçados a promover gaguejos e absurdos – muitas formas de “misticismo” e “existencialismo” são impossíveis sem um comprometimento firme, mas irrealizado, com alguns princípios da ideologia desdenhada (recordemos apenas da “teoria” de que poesia não passa de emoções vividamente exprimidas). Removam-se os princípios, admita-se a possibilidade de muitas formas de vida diferentes, e tais fenômenos desaparecerão como um sonho ruim.
Meu diagnóstico e minhas sugestões coincidem com os de lakatos – até certo ponto. Lakatos identificou princípios de racionalidade excessivamente rígidos como fonte a fonte de algumas versões de irracionalismo e insistiu conosco para que adotemos padrões novos e mais liberais. Identifiquei princípios de racionalidade excessivamente rígidos, bem como um respeito geral pela “razão”, como fonte de algumas formas de misticismo e irracionalismo, e também insisto na adoção de padrões mais liberais. Porém, ao passo que o grande “respeito pela grande ciência” que tem Lakatos leva-o a buscar esses padrões nos limites da ciência moderna “dos dois últimos séculos”, recomento colocar a ciência em seu lugar como uma forma de conhecimento interessante, mas de modo algum exclusiva, que tem muitas vantagens mas também muitos inconvenientes: “embora a ciência como um todo seja um aborrecimento, ainda assim pode-se aprender dela”. Também não acredito que se possa banir os charlatães simplesmente tornando-se mais rígidas as regras.
Charlatães existiram em todos os tempos e nas profissões mais firmemente consolidadas. Alguns dos exemplos que Lakatos menciona parecem indicar que o problema é criado por excesso de controle, e não por falta dele. Isso é especialmente [a] verdade dos novos “revolucionários” e sua “reforma” das universidades. Sua falha é que são puritanos e não que sejam libertinos. Além disso, quem imaginaria que os covardes melhorassem o clima intelectual mais rapidamente do que os libertinos?
(Einstein percebeu esse problema e, portanto, aconselhou as pessoas a não associar sua pesquisa à sua profissão: a pesquisa tem de estar livre das pressões que as profissões tendem a impor.) Precisamos também lembrar que aqueles raros casos em que metodologias liberais de fato encorajam verborréia vazia e pensamento desconexo (“desconexo” de um ponto de vista, embora talvez não de outro) Possam ser inevitáveis no sentido de que o liberalismo culpado é também uma precondição de uma vida livre e humana.
Finalmente, permitam-me repetir que, para mim, o chauvinismo da ciência é um problema muito maior do que o problema da poluição intelectual. Pode até ser uma de suas maiores causas. Os cientistas nãos e dão por satisfeitos em organizar seus próprios cercadinhos de acordo com o que consideram ser as regras do método científico, mas querem universalizar essas regras, querem que ela se torne parte da sociedade em geral e usam de todos os meios à sua disposição – argumento, propaganda, táticas de pressão, intimidação, práticas de lobby – para atingir seus objetivos. Os comunistas chineses reconheceram os perigos inerentes nesse chauvinismo e procederam de modo que o removesse. No decurso disso, restauraram partes importantes da herança intelectual e emocional do povo chinês, bem como aperfeiçoaram a prática da medicina. Seria vantajoso se outros governos seguissem esse exemplo.
1) Até mesmo a lei agora parece apoiar essas tendências, como está mostrado no livro de HUBER, Peter. Galileo’s Revenge. Nova York, 1991.
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