O texto fala por si próprio...
JUNG, Carl Gustav. Freud e a Psicanálise. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 1998, 3ª edição, volume IV das Obras Completas.
NOTA: Os números em colchetes referem-se à numeração original dos parágrafos e serve como referência para citação bibliográfica.
[768] Sobre a diferença entre os pontos de vista de Freud e os meus, deveria, na verdade, escrever alguém que estivesse fora do circuito das idéias que se chamam "Freud" e "Jung". Não sei se mereço que me confiem aquela objetividade que me sobreleva, imparcialmente, acima de minhas próprias idéias. Será que alguém consegue isso? Duvido. Mas se alguém aparentemente conseguir esta façanha digna de um Barão de Münchhausen, então aposto que as idéias não são, em última análise, as suas.
[769] É verdade que idéias amplamente aceitas já não constituem propriedade do autor; ele se toma, antes, um serviçal de suas idéias. Idéias impressionantes, chamadas de idéias verdadeiras, têm algo de peculiar. Elas brotam da intemporalidade, de um sempre estar presente, de uma raiz primitiva materna e psíquica, a partir da qual se desenvolve o espírito efêmero da pessoa individual como a planta que floresce, frutifica, dá sementes e morre. As idéias brotam de algo maior do que da pessoa humana singular. Não as fazemos, elas nos fazem.
[770] Por um lado, idéias são confissão fatal que trazem à luz não apenas o melhor de nós, mas também nossas mais recônditas insuficiências e misérias pessoais. Idéias exclusivamente sobre psicologia! Donde mais poderiam provir que não do mais subjetivo? A experiência do objeto pode escudar-nos da parcialidade subjetiva? Toda experiência não é ela, ao menos em sua metade, de caráter subjetivo? O subjetivo, por sua vez, também é um dado objetivo, um pedaço do mundo. Tudo o que dele provém resulta, em última análise, da composição do mundo, como o mais raro e estranho ser vivente é sustentado e nutrido também pela terra, comum a todos nós. São precisamente as idéias subjetivas que estão mais próximas da natureza e da essência e, por isso, pode-se dizer que são as mais verdadeiras. Mas, "o que é a verdade?”
[771] No tocante à psicologia, acho melhor renunciar à idéia de que estejamos hoje em condições de fazer afirmações "verdadeiras" ou "corretas" sobre a essência da psique. O melhor que conseguimos fazer são expressões verdadeiras. Entendo por expressões verdadeiras uma confissão e uma apresentação detalhada do que se observa subjetivamente. Alguém colocará ênfase especial na forma do que encontrou e se arvorará em autor do seu achado, outro dará mais importância à observação e falará daquilo que se manifesta, valorizando sua atitude receptiva. A verdade estará provavelmente entre ambos: a verdadeira expressão é a que dá forma à observação.
[772] Tudo se resolve neste receber e neste proceder, e o psicólogo de hoje, por mais ambiciosa que seja sua pretensão, só disso pode vangloriar-se. Nossa psicologia é uma confissão de alguns poucos, formulada de modo mais ou menos feliz; e na medida que eles integram mais ou menos um tipo, sua confissão pode ser aceita por muitos outros como descrição bastante válida. Podemos concluir também que àqueles que apresentam outro tipo, mas que pertencem ao gênero das pessoas humanas, aplica-se também esta confissão, ainda que em menor proporção. O que Freud tem a dizer sobre a importância da sexualidade, do prazer infantil e de seu conflito com o "princípio da realidade" é, em primeiro lugar, a mais verdadeira expressão de sua psicologia pessoal. É uma formulação feliz daquilo que observou subjetivamente. Não sou um opositor de Freud, ainda que a visão míope dele próprio e de sua escola insistam em qualificar-me dessa forma. Nenhum psiquiatra experimentado pode negar ter vivenciado dúzias de casos cuja psicologia condiz com a de Freud em todos os aspectos essenciais. Por isso Freud contribuiu, exatamente com sua confissão mais subjetiva, para o nascimento de uma grande verdade humana. Ele mesmo é o exemplo clássico de sua psicologia e dedicou sua vida e trabalho à realização dessa tarefa.
[773] Nosso modo de ser condiciona nosso modo de ver. Outras pessoas tendo outra psicologia vêem e exprimem outras coisas e de outro modo. Isto o demonstrou logo um dos primeiros discípulos de Freud: Alfred Adler. Ele apresentava o mesmo material empírico de um ponto de vista bem diferente, e sua maneira de ver é, no mínimo, tão convincente quanto a de Freud, porque também Adler representa um tipo de psicologia que encontramos com freqüência. Sei que os seguidores de ambas as escolas me consideram, sem mais, no caminho errado, mas a história e os pensadores imparciais me darão razão. Não posso deixar de criticar as duas escolas por interpretarem as pessoas demasiadamente pelo lado patológico e por seus defeitos. Exemplo convincente disso é a impossibilidade de Freud de entender a vivência religiosa1.
[774] Eu prefiro entender as pessoas a partir de sua saúde e gostaria de libertar os doentes daquela psicologia que Freud coloca em cada página de suas obras. Não consigo ver onde Freud consegue ir além de sua própria psicologia e como poderá aliviar o doente de um sofrimento do qual o próprio médico padece. Sua psicologia é a psicologia de um estado neurótico de determinado cunho e, por isso, Freud é verdadeiro e válido, mesmo quando diz uma inverdade, pois também isto faz parte do quadro geral e traz a verdade de uma confissão. Mas não é uma psicologia sã — e isto é sintoma de morbidade — baseada numa cosmovisão acrítica e inconsciente, capaz de estreitar muito o horizonte da visão e da experiência. Foi um grande erro de Freud ter ignorado a filosofia. Jamais critica suas suposições, nunca questiona suas premissas psíquicas. Em minhas preleções anteriores deixei claro que isto é uma necessidade; a crítica de seus próprios fundamentos não teria permitido que expusesse de modo tão ingênuo sua psicologia original2. Em todos os casos teria experimentado as dificuldades que eu encontro. Nunca recusei a bebida agridoce da filosofia crítica, mas procurei sempre, ao menos por precaução, tomar pequenas doses. Muito pouco, dirão meus adversários. Quase demais, diz minha sensibilidade. A autocrítica envenena facilmente o precioso bem da ingenuidade, aquele dom indispensável a qualquer ser criado. De qualquer modo, a crítica filosófica me ajudou a perceber que toda psicologia — inclusive a minha — tem o caráter de uma confissão subjetiva. Tenho que refrear meu poder de crítica para que não destrua minha criatividade. Sei muito bem que toda palavra que pronuncio traz consigo algo de mim mesmo — do meu eu especial e único, com sua história particular e seu mundo todo próprio. Mesmo ao lidar com dados empíricos, estou falando necessariamente de mim mesmo. Mas, aceitando isto como algo inevitável, posso colaborar para o conhecimento do homem pelo homem — uma causa à qual Freud também quis servir e serviu, apesar de tudo. O conhecimento não reside apenas na verdade, mas também no erro.
[775] O reconhecimento do caráter subjetivo da psicologia que cada um produz é talvez o ponto que mais me separa de Freud.
[776] Outro ponto que nos diferencia parece-me o fato de que eu me esforço por não ter pressuposições inconscientes e, por isso, não-críticas sobre o mundo em geral. Eu disse "eu me esforço", pois quem está absolutamente certo de não ter pressuposições inconscientes? Esforço-me por evitar, ao menos, os preconceitos mais grosseiros e, por isso, estou inclinado a reconhecer todos os deuses possíveis, supondo que eles atuam na psique humana. Não duvido de que os instintos naturais se desdobrem grandemente no campo psíquico, quer seja o eros, quer a vontade de poder; não duvido também de que esses instintos entrem em colisão com o espírito, pois sempre estão colidindo com algo, e por que esse algo não pode ser chamado "espírito"? Assim como não sei o que é o espírito em si, da mesma forma não sei o que são "instintos". Ambos são misteriosos para mim; e não posso explicá-los como se um fosse equívoco do outro. Não é nenhum equívoco que a terra só tenha uma lua. Na natureza não há equívocos; estes só existem no campo daquilo que o homem chama "inteligência". Instinto e espírito estão além da minha inteligência; são conceitos que consideramos desconhecidos, mas que são tremendamente operantes.
[777] Minha atitude é, portanto, positiva com relação a todas as religiões. No seu conteúdo doutrinário reconheço aquelas imagens que encontrei nos sonhos e fantasias de meus pacientes. Em sua moral vejo as mesmas ou semelhantes tentativas que fazem meus pacientes, por intuição ou inspiração próprias, para encontrar o caminho certo de lidar com as forças psíquicas. O sagrado comércio, os rituais, as iniciações e a ascese são de grande interesse para mim como técnicas alternativas e formais de testemunhar o caminho certo. Também é positiva minha atitude para com a biologia e para com o empirismo das ciências naturais em geral; nelas vejo uma tentativa hercúlea de entender o íntimo da psique partindo de fora. Num movimento inverso, considero também a gnose religiosa um empreendimento gigantesco do espírito humano que tenta extrair um conhecimento do mundo a partir do interior. Na minha concepção do mundo há um grande exterior e um grande interior; entre esses pólos está o homem que se volta ora para um, ora para outro e, de acordo com seu temperamento e disposição, toma um ou outro como verdade absoluta e, conseqüentemente, nega e/ou sacrifica um pelo outro.
[778] Esta imagem é uma pressuposição — mas naturalmente uma pressuposição da qual não gostaria de abrir mão, pois é muito valiosa para mim como hipótese. Eu a considero heurística e empiricamente demonstrada para mim e confirmada pelo consenso dos povos (consensus gentium). Esta hipótese que certamente brotou de dentro de mim mesmo, ainda que eu julgue tê-la extraído da experiência, foi a responsável por minha teoria dos tipos e minha reconciliação com pontos de vista tão divergentes como, por exemplo, os de FREUD.
[779] Em tudo o que acontece no mundo, vejo o jogo dos opostos e dessa concepção derivo minha idéia de energia psíquica. Acho que a energia psíquica envolve o jogo dos opostos de modo semelhante como a energia física envolve uma diferença de potencial, isto é, a existência de opostos como calor-frio, alto-baixo etc. Freud começou por considerar como única força propulsora psíquica a sexualidade e, somente após minha ruptura com ele, levou também outros fatores em consideração. Eu, porém, reuni os diversos impulsos ou forças psíquicas — todos constituídos mais ou menos ad hoc — sob o conceito de energia a fim de eliminar a arbitrariedade quase inevitável de uma psicologia que lida exclusivamente com a força. Portanto, já não falo de forças ou de impulsos individuais, mas de "intensidades de valores" 3. Com isso não pretendo negar a importância da sexualidade na vida psíquica, conforme Freud me acusa de fazê-lo. O que pretendo é colocar limites à terminologia avassaladora do sexo que vicia toda discussão da psique humana e, também, colocar a própria sexualidade em seu lugar.
[780] O bom senso dirá sempre que a sexualidade é apenas um dos instintos biológicos, apenas uma das funções psicológicas, ainda que muito abrangente e importante. Mas o que acontecerá se, por exemplo, não conseguirmos mais comer? Sem dúvida está muito conturbada, hoje, a esfera psíquica da sexualidade; é semelhante à situação de um dente que dói e parece que toda a constituição psíquica é pura dor de dente. A espécie de sexualidade que Freud descreve é aquela obsessão sexual inequívoca que se encontra sempre que um paciente chegou ao ponto de ter que ser aliciado ou forçado para fora de uma situação ou atitude errôneas, uma espécie de sexualidade represada que volta às proporções normais logo que esteja desimpedido o caminho para sua expansão. Na maioria das vezes é o atolamento nos ressentimentos familiares e as delongas emocionais do "romance familiar" que levam ao represamento da energia vital, e é este represamento que infalivelmente se manifesta sob a forma da sexualidade, que chamamos infantil. Trata-se de uma sexualidade impropriamente dita, de uma descarga de tensões que estariam mais bem estabelecidas em outro campo existencial. O que adianta, pois, ficar navegando neste terreno totalmente inundado? É muito mais importante — ao menos é isto que parece à minha compreensão retilínea — abrir canais de descarga, isto é, encontrar uma nova atitude ou novo modo de vida que forneça um declive conveniente para a energia encurralada. Caso contrário, teremos um círculo vicioso, e é isto que me parece a psicologia de Freud. Falta-lhe qualquer possibilidade de contornar o ciclo inexorável dos eventos biológicos. Desesperados, temos que bradar com Paulo: "Homem miserável que sou, quem me salvará do corpo dessa morte?" E o nosso homem espiritual se apresentará, meneando a cabeça, e dirá com Fausto: "Você está consciente de apenas um impulso", ou seja, do laço carnal que leva de volta ao pai e à mãe ou para adiante, para os filhos que nasceram de nossa carne, um "incesto" com o passado e um "incesto" com o futuro, o pecado original da perpetuarão do "romance familiar". Nada nos liberta disso, a não ser o espírito que é o outro pólo do acontecer no mundo; não são os filhos da carne, mas os "filhos de Deus" que experimentarão a liberdade. Na tragédia de Ernst Barlach, O dia mortal, diz o demônio materno ao final do romance familiar: "Estranho é apenas que o homem não queira aprender que seu pai é Deus". E é isto que Freud nunca quis aprender e contra o que voltam todos os seus adeptos ou, ao menos, não encontram para isso a chave. A teologia não vem ao encontro do pesquisador porque ela exige fé, e esta é um carisma autêntico e verdadeiro que ninguém pode fabricar. Nós modernos estamos predestinados a viver novamente o espírito, isto é, a fazer uma experiência primitiva. Esta é a única possibilidade de romper o círculo vicioso dos eventos biológicos.
[781] Este ponto de vista é a terceira característica que diferencia minhas concepções das de Freud. E por isso me acusam de misticismo. Contudo, não sou responsável pelo fato de o homem espontaneamente ter desenvolvido, sempre e em toda parte, uma função religiosa e que, por isso, a psique humana está imbuída e trançada de sentimentos e idéias religiosos desde os tempos imemoriais. Quem não enxerga este aspecto da psique humana é cego, e quem quiser recusá-lo ou explicá-lo racionalmente não tem senso de realidade. Ou será que, por exemplo, o complexo de pai que perpassa toda a escola de Freud, desde seu fundador até o último membro, trouxe alguma libertação notável dessa fatalidade do romance familiar? Este complexo de pai, com sua rigidez e hipersensibilidade fanáticas, é uma função religiosa mal compreendida, um misticismo que se apoderou do biológico e do familiar. Com seu conceito de "superego", Freud tenta introduzir furtivamente sua antiga imagem de Jeová na teoria psicológica. Essas coisas, a gente as diz bem claramente. Prefiro dar às coisas os nomes que sempre tiveram.
[782] A roda da história não deve ser tocada para trás e o passo do homem para o espiritual, que já começou com os ritos de iniciação primitivos, não deve ser negado. É óbvio que a ciência não só pode, mas deve selecionar campos de atuação com hipóteses bem definidas; mas a psique é uma totalidade superior à consciência, é a mãe e pressuposição da consciência e, por isso, a ciência é apenas uma de suas funções que jamais esgotará a plenitude de sua vida. O psicoterapeuta não deve refugiar-se no ângulo patológico e recusar terminantemente a idéia de que a psique doente é uma psique humana que, apesar de sua doença, participa do todo da vida psíquica da humanidade. Ele tem que admitir, inclusive, que o eu está doente porque foi cortado do todo e porque perdeu sua conexão com a humanidade e com o espírito. O eu é realmente o "lugar do medo", como diz acertadamente Freud 4, mas só enquanto isto não se referir ao pai ou à mãe. Freud sucumbe diante da pergunta de Nicodemos: "Pode alguém voltar ao ventre da mãe e nascer de novo?" A história se repete — se for permitido comparar grandes com pequenas coisas — na briga doméstica da psicologia moderna.
[783] Desde séculos incontáveis, os ritos de iniciação falam do nascimento a partir do espírito, e estranhamente o homem esquece sempre de novo como entender a geração divina. Isto não demonstra uma força especial do espírito, mas as conseqüências da incompreensão manifestam-se como perturbações neuróticas, amargura, estreitamento e avidez. É fácil expulsar o espírito, mas na sopa falta o sal, "o sal da terra". O espírito comprova sua força no fato de a doutrina essencial das antigas iniciações ter sido transmitida de geração em geração. Sempre houve pessoas que entenderam o que significava ser Deus o seu pai. O equilíbrio entre carne e espírito é conservado nesta esfera.
[784] A oposição entre Freud e eu repousa essencialmente na diferença de pressupostos básicos. Pressupostos são inevitáveis e porque são inevitáveis não se deve dar a impressão de que não os tenhamos. Por isso eu trouxe à luz, sobretudo, os aspectos fundamentais; a partir deles é possível entender melhor as várias diferenças, inclusive em seus detalhes, entre a concepção de Freud e a minha.
1 Die Zukunft einer Illusion.
2 Cf. Freud, Die Traumdeutung.
3 Cf.Über psychische Energetik und das Wesen der Traume (Obras Completas, VIII, 1967).
4 Das Ich und das Es.
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