O pequeno messias

Sujei o sofá de novo. Ninguém mais senta nele desde que passei a dormir aqui. Brigam comigo, mas eu não sei como fazer parar. O xixi simplesmente sai.
Eu ouvi um suspiro vindo lá da cozinha, é minha mãe que está chorando.
Fui lá e a vi agachada lá no canto, com um braço em volta das pernas e a outra mão no rosto.

- porque você está chorando?
- por nada, filho.
- se fosse por nada você não chorava.
- é que não tem dinheiro.

Eu bem sei como é o dinheiro. Às vezes é de papel e às vezes de ferro. Acho que o de ferro vale mais, porque o de papel rasga fácil e o de ferro dura. Um dia achei um dinheiro de ferro na rua. Ele estava lá jogado no chão e peguei para mim. Valeu uma bala. Não posso sair para a rua, mas tem o pátio, então vou procurar dinheiro ali pelo chão. Logo depois que sai de casa já achei uma moeda. Era de ferro, mas era o menor de todos. Eu vi que os maiores valiam mais, e os menores valiam menos, mas pelo menos era do de ferro e não do de papel.

- mãe, mãe, olha só. Achei dinheiro.

Eu dei a moeda a ela e ela chorou mais. Eu já sou esperto, e sei que às vezes as pessoas choram só de alegria. Preciso só achar mais dinheiro. O dia foi inútil: não achei mais nenhuma moeda.
Vou dormir no sofá denovo.

- Vá no banheiro senão você faz xixi no sofá denovo!

Isso nunca adianta, mas assim eu faço menos, então eu vou sem reclamar.Amanhã eu procuro mais dinheiro para a minha mãe.

- boa noite, filho.
- boa noite, mãe.

Sonhei que estava em casa e que no lugar do banheiro havia uma entrada para uma caverna.
Eram paredes de pedra, e estávamos eu, minhas irmãs, uma amiga delas e meu amigo aqui do prédio. Ele mora lá em cima no segundo andar. Fomos andando até um lugar que tinha um buraco, e lá no fundo do buraco dava para ver fogo. Era um buraco alto, eu só via o que tinha dentro dele levantando o pé. Eu e meu amigo jogávamos bolinha de gude, e eu como sempre errava tudo. Numa vez eu errei tão feio que dei um jeito de jogar a bolinha dentro do buraco.
Era minha favorita, a branca que eu chamava de leitinho, então eu queria ir buscar. Olhei pelo buraco e vi um lagarto gigante com olhos que eram como bolas de fogo. Era um dragão, porque tinha asas e eu soube que dragões são lagartos grandes com asas. Eu avisei e eles não acreditaram em mim até ele cuspir fogo. Aí correram, e como eu era menor fui ficando para trás. O dragão atrás de nós e eu ficando para trás. Gritei pela minha irmã mais velha e ela veio me buscar. Ela me levou carregado no colo até de volta para a sala, e olhei pra trás e vi apenas o banheiro. Virei de novo para frente e vi minha tia na porta, ela estava ali para nos salvar.

Contei meu sonho no dia seguinte e minha mão nem ligou. Acho que ela não acredita em mim.
Mas eu não disse que tinha dragão em casa, só que eu sonhei. Acho que ela ainda está triste por não ter dinheiro. Vou sair pra procurar. Assim que eu saí havia uma moeda igual no quintal. Mais uma das menores. Nem pensei muito, peguei e dei a minha mãe, ela estava deitada na cama.

Os dias foram se passando, as vezes eu lembrava do sonho e contava, as vezes eu só acordava chorando. Todos os dias eu achava a moeda no mesmo canto, e não via onde todas essas moedas iam parar. A dona que morava ao lado da minha casa me chamou para ir na casa dela. De tão distraído procurando moedas eu nem tinha comido nada de manhã, e ela me deu pão com leite.
Enquanto eu comia eu vi uma pedra preta. Era um imã daqueles em que grudam as coisas de ferro. Tinha muitas moedas no imã, e eu fiquei olhando os números nelas. A minha moeda era 1, mas ali tinha dez, vinte e cinco e cinqüenta. Tinha até uma que era um, só que maior.

- Qual é a moeda que vale mais de todas, dona?
- A moeda que vale mais é a de ouro.
- Elas valem mais que as fichas do fliper?
- Elas valem mais do que todas as fichas do fliper juntas.

Perfeito, agora tudo o que eu tinha que fazer era encontrar algumas moedas de ouro e eu resolveria a tristeza da minha mãe. Eu sei como é, parece com o sol. Procurei o dia todo, mas percebi que no chão ninguém deixaria moeda de ouro. Elas deviam estar guardadas em algum lugar, mas onde?
Perguntei à minha irmã do meio onde eu as encontraria:

- Eu sei onde você acha.
- Onde?
- Tem alças de gaveta na parede, iguais às do armário.
- Onde?
- É nessa parede aí, mas é invisível. Se você puxar no lugar certo abre uma gaveta cheia de moedas de ouro.

Eu fiquei tentando por um bom tempo, até perceber que estava muitas vezes tentando nos mesmo lugares. Eu nem via que já tinha tentado ali, não dava pra lembrar.
Bolei um plano. Subi na cama e com a ponta do pé tentei puxar lá no alto no canto da porta.
Não deu, então eu fui só um pouco pro lado, e depois mais um pouco pro lado. Quando fui ver já tinha tentado de um lado até o outro, e depois desci um pouco e fui de um lado até o outro.
Fui até de baixo da cama e não achei nenhuma gaveta. Minha irmã chegou da escola.

- Onde é a gaveta que eu não acho?
- haha! Você acreditou nisso. Não tem gaveta não!
- Mas você disse que tinha gaveta!

Ela ficou rindo de mim e depois continuou.

- Eu pego a moeda de um centavo todo o dia e jogo de volta no quintal.

Fiquei com raiva bati nela. Girei os braços nela, mas eram pequenos e nem doía.
Fui dormir no sofá e sonhei. Nesse sonho meu pai aparecia aqui em casa. Ele tinha um carro, e ia me levar pra passear. Tem um menino do outro lado da rua que tem pai, e ele disse que é bom. Eu queria ir com meu pai, mas quando eu fui buscar a bolsa a minha irmã do meio entrou no carro e disse que eu não queria vir. Meu pai saiu com ela e me deixou lá no portão.
Acho que eu sonho coisas assim quando acordo chorando, porque dessa vez acordei chorando.
Fui na cozinha e minha mãe estava lá denovo, dessa vez com minha irmã do lado dela.
O saco de pão duro não tinha pão.

- Eu queria pão, mas não tem dinheiro.

Quando eu disse isso minha mãe ficou um tempo me olhando, eu não entendi por que.
Acho que é porque fiz xixi no sofá. Ela levantou e disse pra minha irmã mais velha tomar conta de mim e da irmã do meio. Saiu, e quando voltou tinha pão com manteiga e leite.

- A gente precisa confiar em Deus, disse ela. Ele ajuda.
- Onde é que deus fica?
- Ele fica lá no céu.

Eu não caio mais nessa de acreditar no que não da pra ver, mas minha mãe fica falando que teremos uma casa na praia, e pede pra eu falar com ela. Eu falo, mas não sei nem o que é praia.
Será que tem dinheiro no chão da praia pra achar?

1 comentários:

Maria Ligia Ueno disse...

é de atordoar ler algo assim e saber que a realidade pode ser ainda pior.