Decidi postar um fragmento de uma obra minha no blog, pois considero relevante. Não tenho, no momento, nada a declarar sobre ela, pois não falo mais de obras inacabadas. Não quero expectativas, pois ela cortam de minha criatividade. Esse texto basta-se a si mesmo em significado, como o mito da caverna de Platão.
- Ele está ligado. Podem questioná-lo à vontade. Ele responderá normalmente.
- O que significa isso? Responderá normalmente?
- Significa que ele responderá segundo seu padrão. É imutável.
Augusto olhou para mim confuso.
- Tem idéias, Roberto?
- Acho que sim. Matias, você disse que esse homem escolheu morrer, certo?
- Sim, escolheu.
O robô estava piscando os olhos, mas não falava nada. Nos olhava a ouvia o que dizíamos, mas parecia indiferente. Eu já sabia o que dizer.
- Porque você quer morrer?
- Porque estou cansado e vi como são os habitantes desse planeta são ignorantes e primitivos. Passei toda a minha vida educando homens, e de fato ajudei muitos deles a alcançarem o cheiro, mas há muitos homens no seu mundo, e uns que levariam dezenas de anos para abrir a mente e aí sim entenderem o cheiro. Estou cansado e sei que já cumpri a minha missão.
- Que é o cheiro?
- Vocês não usam as palavras cheiro, essência e aroma para designar a natureza das coisas ou, noutras palavras, como elas são.
- O cheiro é a verdade! - exclamou Augusto
- Sua linguagem é inexata, então quando se diz verdade não sei que palavra usar. Temos diversas palavras com diversos significados e todas são traduzidas como verdade. Sua linguagem é primitiva.
- Sim, mas eu entendi.
- O que é o cheiro?
- Não posso aprender, portanto não posso ensinar.
- Como?
- Não posso te entender.
- Mas você conhece o cheiro.
- Conheço o meu.
- Pode me ajudar a conhecer o meu?
- Não posso, não posso te entender.
- Você não conhece nossa raça?
- Conheço todo o funcionamento genético da sua raça, assim como o físico. Fui o ultimo dos engenheiros genéticos que construiu os nossos corpos como são atualmente.
- Quer dizer que você que os tornou pequenos?
- Não. Na minha época todos já eram pequenos.
- Que alterações vocês fizeram?
- Alterações estéticas e adaptação para atmosfera poluída com dióxido de carbono.
- Se você sabe tanto sobre nós, porque não pode me entender?
- Não posso entender mais nada.
- Não entendo. Porque não pode mais entender nada?
- A estrutura do meu pensamento não é real. Isso que fala com você é apenas a cópia de um homem que já existiu, mas que se foi. Não sou humano e nem nunca serei.
- Você precisa ser humano para me entender?
- Sim, preciso ser mutável.
- Você não muda?
- Não posso mudar, sou apenas uma maquina projetada com paradigmas e valores de um homem que já morreu por escolha própria. Segundo o paradigma dele próprio, sou um erro e nunca devia ter sido criado.
- Você tem memória?
- Sim.
- Sua memória não muda seus paradigmas?
- Não tenho paradigmas, apenas parâmetros. Sou exatamente aquilo que fui programado para ser.
- Pode me passar informações sobre sua memória?
- Posso.
- Quem te criou?
- Aquele que veio trazer o conhecimento e o futuro. Filho do homem que teve os paradigmas copiados para esse sistema. Segundo o julgamento de valores dele, foi uma forma de não aceitar a decisão do pai. Ele tinha apenas quarenta anos e era imaturo, mas isso serviu de lição para todos, segundo consta na história da inteligência artificial e engenharia mental.
- Você pode reproduzir algum diálogo que teve com ele?
- Não, ele não dá autorização pra isso.
- Entendo. Pode, se esquivando das palavras dele, explicar como foi a situação.
- Ele me pediu um conselho sobre uma mulher. Não pude dar, porque não posso construir novos paradigmas e não posso entender pessoas, já que não sou humano. Ele foi tomado por um impulso infantil de raiva e destruiu minha perna e parte do meu tronco com uma barra de aço.
- O que você entende por aço? – perguntou Augusto.
- É o nome que vocês dão a essa combinação de elementos.
- Ele agüentou uma barra de aço?
- Usou controle de gravidade.
- Você é contra o projeto de ajudarem nosso planeta e de se instalarem nele?
- Segundo consta, esse é o único planeta no qual encontramos uma atmosfera capaz de contar vida além do nosso na época em saímos do planeta. Nossos recursos foram medidos para durar cem anos depois da chegada na terra, graças ao sistema de reciclagem química. Durante a viagem nossa raça foi completamente modificada para se adaptar à sua atmosfera. O julgamento de valores do dono desses paradigmas é de que sua função não era de habitar esse planeta, mas sim de preparar os habitantes para um novo tipo de vida. Na verdade ele era a favor desse contato, mas não estava disposto a ir até lá.
- Isso não é covardia?
- Segundo o julgamento de valor dele, nossa raça não deveria viver tanto.
- Ora, estou cansado disso de “o que deveria”. De onde ele tirou que a função dele era apenas ajudar a sua civilização? É um egoísta!
- Você é egoísta, pois, segundo o julgamento do dono dos paradigmas, você só pensa no próprio crescimento e não leva em consideração os sentimentos e pensamentos dele. Que são distintos dos seus.
Fiquei estupefato. Aquele robô estava me julgando, e, pela primeira vez na vida, um julgamento me atingiu. Senti necessidade sentimental de me defender, e, apesar de reconhecer a exatidão das afirmações do robô eu tive que apresentar contestações.
- Se você não tem valores por ser apenas uma cópia e não pode me entender, como pode afirmar que eu sou um egoísta?
- Estereótipo. Uma identificação superficial de padrões comportamentais que causa uma projeção de outra identidade similar à sua. Estou partindo da premissa de que você é uma das pessoas que existiam na época em que o homem vivia.
- Essa pessoa está morta?
- Não. Ela mudou e não sou mais capaz de entendê-la.
- Quem era ela?
- Aquele que veio trazer o conhecimento e o futuro.
Diante daquilo que me senti pequeno. Muito pequeno. Aquele homem que foi classificado como criança mesmo tendo sido genial ao ponto de criar um robô estava sendo projetado em mim. Isso quer dizer que, segundo o julgamento de valores dessa sociedade, eu não passo de uma criança. Na terra eu sempre me senti incomodado com a infantilidade das pessoas, mas aqui tudo o que se evidencia é o fato de que eu sou uma criança.
- Não entendo. Sempre achei que meu maior objetivo era me tornar quem eu sou. Disse eu.
- Isso é apenas o começo. Na verdade o que você chama de tornar-se a si mesmo é apenas o começo. É basicamente o processo de libertação. Um homem só começa a se tornar sábio depois que se libertou de si mesmo.
- Mas se eu devia me tornar quem eu sou, como eu poderia me libertar de mim mesmo? Isso parece um contra-senso.
- Seu pensamento é arcaico segundo o julgamento estereotipado de comparação. Não entende o cheiro e por isso separa as coisas que são unidas com sua lógica falha. Depois de separar você diz que uma parte não combina com a outra. Não entende nada. Cria um mundo primitivo, acredita nele e nunca vai se libertar enquanto não sair desses raciocínios de antítese e circulares.
- Me fale mais sobre meu erro.
- Acontece que alcançar sua essência é justamente se libertar, pois enquanto o homem não sabe quem é ele fica preso em arbitrariedades como essa que você falou, que é uma contradição que só existe dentro de você e dos que não se tornaram quem são. Um homem que alcança a si mesmo se desprende, porque ele entra num mundo muito mais amplo do que esse de egoísmo infantil. Não tem interesse em submeter o universo aos seus próprios paradigmas. Ele não fica oscilando entre achar que é tudo e tudo pode e nem que não é nada e nada pode. Isso é tudo resultado da educação deficiente e baseadas em instintos primitivos da sua civilização.
Eu não tinha mais palavras. Minhas racionalizações não me salvariam dessa vez, e eu sabia que um robô com paradigmas imutáveis havia dito tanta coisa sábia. Eu não tinha resposta, e nem mesmo tinha entendido completamente aquilo que ele havia dito. Aquela civilização era muito mais avançada do que eu imaginava. Ela transcendia tudo o que eu entendia, e percebi que Matias também estava estupefato. Ele é novo, então provavelmente ainda está por aprender esse tipo de lição. Augusto nada falava, e nem imagino o que pensava. Acho que ele ficou tão chocado que estava sem palavras, assim como eu estava. Parecia que a surpresa havia me anestesiado, e de repente nós fomos retirados da sala.
Um diálogo com um robô
Postado por Silas às segunda-feira, junho 22, 2009
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